Graciliano Ramos
107ª edição
ÍNDICE
Capítulo I Mudança
Capítulo II Fabiano
Capítulo III Cadeia
Capítulo IV Sinha Vitória
Capítulo V O menino mais novo
Capítulo VI O menino mais velho
Capítulo VII Inverno
Capítulo VIII Festa
Capítulo IX Baleia
Capítulo X Contas
Capítulo XI Soldado amarelo
Capítulo XII Mundo coberto de penas
Capítulo XIII Fuga
Capítulo I – Mudança
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para lá, devagar, Sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.
Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.
– Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.
Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.
A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.
– Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário – e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde. Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinha Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinha Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinha Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis.
E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande.
Ausente do companheiro, a cachorra Baleia tomou a frente do grupo. Arqueada, as costelas à mostra, corria ofegando, a língua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se retardavam.
Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, a beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano também às vezes sentia falta dela, mas logo a recordação chegava. Tinha andado a procurar raízes, à toa: o resto da farinha acabara, não se ouvia um berro de rês perdida na catinga. Sinha Vitória, queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. Despertara-a um grito
áspero,
vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés
apalhetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como
alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não
podia deixar de ser mudo.. Ordinariamente a família falava pouco. E depois
daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O
louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra.
As
manchas dos juazeiros tornaram a aparecer, Fabiano aligeirou o passo, esqueceu
a fome, a canseira e os ferimentos. As alpercatas dele estavam gastas nos
saltos, e a embira tinha-lhe aberto entre os dedos rachaduras muito dolorosas.
Os calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e sangravam.
Num
cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a esperança de achar
comida, sentiu desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para
não estragar força.
Deixaram
a margem do rio, acompanharam a cerca, subiram uma ladeira, chegaram aos
juazeiros. Fazia tempo que não viam sombra.
Sinha
Vitória acomodou os filhos, que arriaram como trouxas, cobriu-os com molambos.
O menino mais velho, passada a vertigem que o derrubara, encolhido sobre folhas
secas, a cabeça encostada a uma raiz, adormecia, acordava. E quando abria os
olhos, distinguia vagamente um monte próximo, algumas pedras, um carro de bois.
A cachorra Baleia foi enroscar-se junto dele.
Estavam
no pátio de uma fazenda sem vida O curral deserto, o chiqueiro das cabras
arruinado e também deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava
abandono. Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido. Fabiano
procurou em vão perceber um toque de chocalho. Avizinhou-se da casa, bateu,
tentou forçar a porta. Encontrando resistência, penetrou num cercadinho cheio
de plantas mortas, rodeou a tapera, alcançou o terreiro do fundo, viu um
barreiro vazio, um bosque de catingueiras murchas, um pé de turco e o
prolongamento da cerca do curral. Trepou-se no mourão do canto, examinou a
catinga, onde avultavam as ossadas e o negrume dos urubus. Desceu, empurrou a
porta da cozinha. Voltou desanimado, ficou um instante no copiar, fazendo
tenção de hospedar ali a família. Mas chegando aos juazeiros, encontrou os
meninos adormecidos e não quis acordá-los. Foi apanhar gravetos, trouxe do
chiqueiro das cabras uma braçada de madeira meio roída pelo cupim, arrancou
touceiras de macambira, arrumou tudo para a fogueira.
Nesse
ponto Baleia arrebitou as orelhas, arregaçou as ventas, sentiu cheiro de preás,
farejou um minuto, localizou-os no morro próximo e saiu correndo.
Fabiano
seguiu-a com a vista e espantou-se uma sombra passava por cima do monte. Tocou
o braço da mulher, apontou o céu, ficaram os dois algum tempo agüentando a
claridade do sol. Enxugaram as lágrimas, foram agachar-se perto dos filhos,
suspirando, conservaram-se encolhidos, temendo que a nuvem se tivesse desfeito,
vencida pelo azul terrível, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente.
Entrava
dia e saía dia. As noites cobriam a terra de chofre.
A
tampa anilada baixava, escurecia, quebrada apenas pelas vermelhidões do poente.
Miudinhos,
perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas
desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de
Sinha Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam.
Resistiram a fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo de afrontar de
novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava.
Iam-se
amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá.
Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras,
afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o
focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo.
Aquilo
era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver.
Olhou o céu com resolução. A nuvem tinha crescido, agora cobria o morro
inteiro. Fabiano pisou com segurança, esquecendo as rachaduras que lhe
estragavam os dedos e os calcanhares.
Sinha
Vitória remexeu no baú, os meninos foram quebrar uma haste de alecrim para fazer
um espeto. Baleia, o ouvido atento, o traseiro em repouso e as pernas da frente
erguidas, vigiava, aguardando a parte que lhe iria tocar, provavelmente os
ossos do bicho e talvez o couro.
Fabiano
tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio seco, achou no bebedouro
dos animais um pouco de lama. Cavou a areia com as unhas, esperou que a água
marejasse e, debruçando-se no chão, bebeu muito. Saciado, caiu de papo para
cima, olhando as estrelas, que vinham nascendo. Uma, duas, três, quatro, havia muitas
estrelas, havia mais de cinco estrelas no céu. O poente cobria-se de cirros – e
uma alegria doida enchia o coração de Fabiano.
Pensou
na família, sentiu fome. Caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer
não se diferençava muito da bolandeira de seu Tomás. Agora, deitado, apertava a
barriga e batia os dentes. Que fim teria levado a bolandeira de seu Tomás?
Olhou
o céu de novo. Os cirros acumulavam-se, a lua surgiu, grande e branca.
Certamente ia chover.
Seu
Tomás fugira também, com a seca, a bolandeira estava parada. E ele, Fabiano,
era como a bolandeira. Não sabia porquê, mas era. Uma, duas, três, havia mais
de cinco estrelas no céu. A lua estava cercada de um halo cor de leite. Ia
chover. Bem. A catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral,
ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de
ossos animariam a solidão. Os meninos, gordos, vermelhos, brincariam no
chiqueiro das cabras, Sinha Vitória vestiria saias de ramagens vistosas. As
vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria toda verde.
Lembrou-se
dos filhos, da mulher e da cachorra, que estavam lá em cima, debaixo de um
juazeiro, com sede. Lembrou-se do preá morto. Encheu a cuia, ergueu-se,
afastou-se, lento, para não derramar a água salobra. Subiu a ladeira. A aragem
morna acudia os xiquexiques e os mandacarus. Uma palpitação nova. Sentiu um
arrepio na catinga, uma ressurreição de garranchos e folhas secas.
Chegou.
Pôs a cuia no chão, escorou-a com pedras, matou a sede da família. Em seguida
acocorou-se, remexeu o aió, tirou o fuzil, acendeu as raízes de macambira,
soprou-as, inchando as bochechas cavadas. Uma labareda tremeu, elevou-se,
tingiu-lhe o rosto queimado, a barba ruiva, os olhos azuis. Minutos depois o
preá torcia-se e chiava no espeto de alecrim.
Eram
todos felizes. Sinha Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha
de sinhá Vitória remoçaria, as nádegas bambas de Sinha Vitória engrossariam, a
roupa encarnada de Sinha Vitória provocaria a inveja das outras caboclas.
A
lua crescia, a sombra leitosa crescia, as estrelas foram esmorecendo naquela
brancura que enchia a noite. Uma, duas, três, agora havia poucas estrelas no
céu. Ali perto a nuvem escurecia o morro.
A
fazenda renasceria – e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria
dono daquele mundo.
Os
troços minguados ajuntavam-se no chão: a espingarda de pederneira, o aió, a
cuia de água o baú de folha pintada. A fogueira estalava. O preá chiava em cima
das brasas.
Uma
ressurreição. As cores da saúde voltariam a cara triste de Sinha Vitória. Os
meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos
tilintariam pelos arredores. A catinga ficaria verde.
Baleia
agitava o rabo, olhando as brasas. E como não podia ocupar-se daquelas coisas,
esperava com paciência a hora de mastigar os ossos. Depois iria dormir.
Capítulo
II – Fabiano
Fabiano
curou no rasto a bicheira da novilha raposa. Levava no aió um frasco de
creolina, e se houvesse achado o animal, teria feito o curativo ordinário. Não
o encontrou, mas supôs distinguir as pisadas dele na areia, baixou-se, cruzou
dois gravetos no chão e rezou. Se o bicho não estivesse morto, voltaria para o
curral, que a oração era forte.
Cumprida
a obrigação, Fabiano levantou-se com a consciência tranqüila e marchou para
casa. Chegou-se a beira do rio. A areia fofa cansava-o, mas ali, na lama seca,
as alpercatas dele faziam chape-chape, os badalos dos chocalhos que lhe pesavam
no ombro, pendurados em correias, batiam surdos. A cabeça inclinada, o espinhaço
curvo, agitava os braços para a direita e para a esquerda. Esses movimentos
eram inúteis, mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô e outros antepassados
mais antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as
mãos. E os filhos já começavam a reproduzir o gesto hereditário.
Chape-chape.
Os três pares de alpercatas batiam na lama rachada, seca e branca por cima,
preta e mole por baixo. A lama da beira do rio, calcada pelas alpercatas,
balançava.
A
cachorra Baleia corria na frente, o focinho arregaçado, procurando na catinga a
novilha raposa.
Fabiano
ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família
morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um
juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos
tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos
sofrimentos passados esmorecera.
Pisou
com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas.
Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho,
acendeu-o ao binga, pôs-se a fumar regalado.
–
Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se,
notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar
só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar
coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os
cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios,
descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou
em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase
imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
–
Você é um bicho, Fabiano.
Isto
para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.
Chegara
naquela situação medonha – e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu
cigarro de palha.
–
Um bicho, Fabiano.
Era.
Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto, passara uns dias
mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã. Viera a trovoada. E, com ela, o
fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e oferecera os seus
préstimos, resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que
tinha era ficar. E o patrão aceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro.
Agora
Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho,
entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou as quipás,
os mandacarus e os xiquexiques. Era mais forte que tudo isso, era como as
catingueiras e as baraúnas. Ele, Sinha Vitória, os dois filhos e a cachorra
Baleia estavam agarrados à terra.
Chape-chape.
As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as
pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco.
Entristeceu.
Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo,
andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado
pela seca. Achava-se ali de passagem, era hóspede. Sim senhor, hóspede que
demorava demais, tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao
juazeiro que os tinha abrigado uma noite.
Deu
estalos com os dedos. A cachorra Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe as mãos
grossas e cabeludas. Fabiano recebeu a carícia, enterneceu-se
–
Você é um bicho, Baleia.
Vivia
longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam
espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo,
grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que
o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia para um lado, para o
outro lado, cambaio, torto e feio. As vezes utilizava nas relações com as
pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações,
onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e
difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que
elas eram inúteis e talvez perigosas.
Uma
das crianças aproximou-se, perguntou-lhe qualquer coisa. Fabiano parou, franziu
a testa, esperou de boca aberta a repetição da pergunta. Não percebendo o que o
filho desejava, repreendeu-o. O menino estava ficando muito curioso, muito
enxerido. Se continuasse assim, metido com o que não era da conta dele, como
iria acabar? Repeliu-o, vexado:
–
Esses capetas têm idéias...
Não
completou o pensamento, mas achou que aquilo estava errado. Tentou recordar o
seu tempo de infância, viu-se miúdo, enfezado, a camiSinha encardida e rota
acompanhando o pai no serviço do campo, interrogando-o debalde. Chamou os
filhos, falou de coisas imediatas, procurou interessá-los. Bateu palmas
–
Ecô! ecô!
A
cachorra Baleia saiu correndo entre os alastrados e quipás, farejando a novilha
raposa. Depois de alguns minutos voltou desanimada, triste, o rabo murcho.
Fabiano consolou-a, afagou-a. Queria apenas dar um ensinamento aos meninos. Era
bom eles saberem que deviam proceder assim.
Alargou
o passo, deixou a lama seca da beira do rio, chegou à ladeira que levava ao
pátio. Ia inquieto, uma sombra no olho azulado. Era como se na sua vida
houvesse aparecido um buraco. Necessitava falar com a mulher, afastar aquela
perturbação, encher os cestos, dar pedaços de mandacaru ao gado. Felizmente a
novilha estava curada com reza. Se morresse, não seria por culpa dele.
–
Eco! ecô!
Baleia
voou de novo entre as macambiras, inutilmente. As crianças divertiram-se,
animaram-se, e o espírito de Fabiano se destoldou. Aquilo é que estava certo.
Baleia não podia achar a novilha num banco de macambira, mas era conveniente
que os meninos se acostumassem ao exercício fácil – bater palmas, expandir-se
em gritaria, seguindo os movimentos do animal. A cachorra tornou a voltar, a
língua pendurada, arquejando. Fabiano tomou a frente do grupo, satisfeito com a
lição, pensando na égua que ia montar, uma égua que não fora ferrada nem levara
sela. Haveria na catinga um barulho medonho.
Agora
queria entender-se com Sinha Vitória a respeito da educação dos pequenos.
Certamente ela não era culpada. Entregue aos arranjos da casa, regando os
craveiros e as panelas de losna, descendo ao bebedouro com o pote vazio e
regressando com o pote cheio, deixava os filhos soltos no barreiro, enlameados
como porcos. E eles estavam perguntadores, insuportáveis. Fabiano dava-se bem
com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha.
–
Está aí.
Se
aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca ficaria
satisfeito.
Lembrou-se
de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão o mais arrasado era seu Tomás
da bolandeira. Porquê? Só se era porque lia demais. Ele, Fabiano, muitas vezes
dissera: – "seu Tomás, vossemecê não regula. Para que tanto papel? Quando
a desgraça chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros." Pois
viera a seca, o pobre do velho, tão bom e tão lido, perdera tudo, andava por
aí, mole. Talvez já tivesse dado o couro às varas, que pessoa como ele não
podia agüentar verão puxado.
Certamente
aquela sabedoria inspirava respeito. Quando seu Tomás da bolandeira passava,
amarelo, sisudo, corcunda, montado num cavalo cego, pé aqui, pé acolá, Fabiano
e outros semelhantes descobriam-se. E seu Tomás respondia tocando na beira do
chapéu de palha, virava-se para um lado e para outro, abrindo muito as pernas
calçadas em botas pretas com remendos vermelhos.
Em
horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras difíceis,
truncando tudo, o convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente
que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo.
Seu
Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e livros,
mas não sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem remediado ser cortês. Até o
povo censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele. Ah! Quem disse que
não obedeciam?
Os
outros brancos eram diferentes. O patrão atual, por exemplo, berrava sem
precisão. Quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar tudo
ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o
vaqueiro. Natural. Descompunha porque podia descompor, o Fabiano ouvia as
descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-se e prometia
emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e
o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha dúvida?
Fabiano,
uma coisa da fazenda, um traste, seria despedido quando menos esperasse. Ao ser
contratado, recebera o cavalo de fábrica, perneiras, gibão, guarda-peito e
sapatões de couro cru, mas ao sair largaria tudo ao vaqueiro que o
substituísse.
Sinha
Vitória desejava possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira. Doidice.
Não dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que era doidice. Cambembes
podiam ter luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os botaria
fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos.
Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau.
Olhou
a catinga amarela, que o poente avermelhava. Se a seca chegasse, não ficaria
planta verde. Arrepiou-se. Chegaria, naturalmente. Sempre tinha sido assim,
desde que ele se entendera. E antes de se entender, antes de nascer, sucedera o
mesmo – anos bons misturados com anos ruins. A desgraça estava em caminho,
talvez andasse perto. Nem valia a pena trabalhar. Ele marchando para casa,
trepando a ladeira, espalhando seixos com as alpercatas – ela se avizinhando a
galope, com vontade de matá-lo.
Virou
o rosto para fugir à curiosidade dos filhos, benzeu-se. Não queria morrer.
Ainda tencionava correr mundo, ver terras, conhecer gente importante como seu
Tomás da bolandeira. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar com ela,
sentir-se com força para brigar com ela e vencê-la. Não queria morrer. Estava
escondido no mato como tatu. Duro, lerdo como tatu. Mas um dia sairia da toca,
andaria com a cabeça levantada, seria homem.
–
Um homem, Fabiano.
Coçou
o queixo cabeludo, parou, reacendeu o cigarro. Não, provavelmente não seria
homem: seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase
uma rês na fazenda alheia.
Mas
depois? Fabiano tinha a certeza de que não se acabaria tão cedo. Passara dias
sem comer, apertando o cinturão, encolhendo o estômago. Viveria muitos anos,
viveria um século,. Mas se morresse de fome ou nas pontas de um touro, deixaria
filhos robustos, que gerariam outros filhos.
Tudo
seco em redor. E o patrão era seco também, arreliado, exigente e ladrão,
espinhoso como um pé de mandacaru.
Indispensável
os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para o gado,
consertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não
calejassem, teriam o fim de seu Tomás da bolandeira. Coitado. Para que lhe
servira tanto,livro, tanto jornal? Morrera por causa do, estômago doente e das
pernas fracas.
Um
dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito... Seria que
as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Não sabia. Seu Tomás da
bolandeira é que devia ter lido isso. Livres daquele perigo, os meninos
poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos. Agora tinham obrigação de
comportar-se como gente da laia deles.
Alcançou
o pátio, enxergou a casa baixa e escura, de telhas pretas, deixou atrás os
juazeiros, as pedras onde se jogavam cobras mortas, o carro de bois. As
alpercatas dos pequenos batiam no chão branco e liso. A cachorra Baleia trotava
arquejando, a boca aberta.
Aquela
hora Sinha Vitória devia estar na cozinha, acocorada junto à trempe, a saia de
ramagens entalada entre as coxas, preparando a janta. Fabiano sentiu vontade de
comer. Depois da comida, falaria com Sinha Vitória a respeito da educação dos
meninos.
Capítulo
III – Cadeia
Fabiano
tinha ido à feira da cidade comprar mantimentos. Precisava sal, farinha, feijão
e rapaduras. Sinha Vitória pedira além disso uma garrafa de querosene e um
corte de chita vermelha. Mas o querosene de seu Inácio estava misturado com
água, e a chita da amostra era cara demais.
Fabiano
percorreu as lojas, escolhendo o pano regateando um tostão em côvado, receoso
de ser enganado. Andava irresoluto, uma longa desconfiança dava-lhe gestos
oblíquos. A tarde puxou o dinheiro, meio tentado, e logo se arrependeu, certo
de que todos os caixeiros furtavam no preço e na medida: amarrou as notas na
ponta do lenço, meteu-as na algibeira, dirigiu-se à bodega de seu Inácio, onde
guardara os picuás.
Aí
certificou-se novamente de que o querosene estava batizado e decidiu beber uma
pinga, pois sentia calor. Seu Inácio trouxe a garrafa de aguardente. Fabiano
virou o copo de um trago, cuspiu, limpou os beiços à manga, contraiu o rosto.
Ia jurar que a cachaça tinha água. Por que seria que seu Inácio botava água em
tudo? perguntou mentalmente. Animou-se e interrogou o bodegueiro:
–
Por que é que vossemecê bota água em tudo?
Seu
Inácio fingiu não ouvir. E Fabiano foi sentar-se na calçada, resolvido a
conversar. O vocabulário dele era pequeno, mas em horas de comunicabilidade
enriquecia-se com algumas expressões de seu Tomás da bolandeira. Pobre de seu
Tomás. Um homem tão direito sumir-se como cambembe, andar por este mundo de
trouxa nas costas. Seu Tomás era pessoa de consideração e votava. Quem diria?
Nesse
ponto um soldado amarelo aproximou-se e bateu familiarmente no ombro de
Fabiano:
–
Como é, camarada? Vamos jogar um trinta-e-um lá dentro?
Fabiano
atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomás
da bolandeira:
–
Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer Enfim, contanto, etc. É conforme.
Levantou-se
e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e mandava. Fabiano sempre havia
obedecido. Tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e
obedecia.
Atravessaram
a bodega, a corredor, desembocaram numa sala onde vários tipos jogavam cartas
em cima de uma esteira.
–
Desafasta, ordenou o polícia. Aqui tem gente.
Os
jogadores apertaram-se, os dois homens sentaram-se, o soldado amarelo pegou o
baralho. Mas com tanta infelicidade que em pouco tempo se enrascou. Fabiano
encalacrou-se também. Sinha Vitória ia danar-se, e com razão.
–
Bem feito.
Ergueu-se
furioso, saiu da sala, trombudo.
–
Espera aí, paisano, gritou o amarelo.
Fabiano,
as orelhas ardendo, não se virou. Foi pedir a seu Inácio os troços que ele
havia guardado, vestiu o gibão, passou as correias dos alforjes no ombro,
ganhou a rua.
Debaixo
do jatobá do quadro taramelou com Sinha Rita louceira, sem se atrever a voltar
para casa. Que desculpa iria apresentar a Sinha Vitória? Forjava uma explicação
difícil. Perdera o embrulho da fazenda, pagara na botica uma garrafada para
Sinha Rita louceira. Atrapalhava-se tinha imaginação fraca e não sabia mentir.
Nas invenções com que pretendia justificar-se a figura de Sinha Rita aparecia
sempre, e isto o desgostava. Arruinaria uma história sem ela, diria que haviam
furtado o cobre da chita. Pois não era? Os parceiros o tinham pelado no
trinta-e-um. Mas não devia mencionar o jogo. Contaria simplesmente que o lenço
das notas ficara no bolso do gibão e levara sumiço. Falaria assim: –
"Comprei os mantimentos. Botei o gibão e os alforjes na bodega de seu
Inácio. Encontrei um soldado amarelo" Não, não encontrara ninguém.
Atrapalhava-se de novo. Sentia desejo de referir-se ao soldado, um conhecido
velho, amigo de infância. A mulher se incharia com a notícia. Talvez não se
inchasse. Era atilada, notaria a pabulagem. Pois estava acabado. O dinheiro
fugira do bolso do gibão, na venda de seu Inácio. Natural.
Repetia
que era natural quando alguém lhe deu um empurrão, atirou-o contra o jatobá. A
feira se desmanchava; escurecia; o homem da iluminação, trepando numa escada,
acendia os lampiões. A estrela papa-ceia branqueou por cima da torre da igreja;
o doutor juiz de direito foi brilhar na porta da farmácia; o cobrador da
prefeitura passou coxeando, com talões de recibos debaixo do braço; a carroça
de lixo rolou na praça recolhendo cascas de frutas; seu vigário saiu de casa e
abriu o guarda-chuva por causa do sereno; Sinha Rita louceira retirou-se.
Fabiano
estremeceu. Chegaria a fazenda noite fechada. Entretido com o diabo do jogo,
tonto de aguardente, deixara o tempo correr. E não levava o querosene, ia-se
alumiar durante a semana com pedaços de facheiro. Aprumou-se, disposto a
viajar. Outro empurrão desequilibrou-o. Voltou-se e viu ali perto o soldado
amarelo, que o desafiava, a cara enferrujada, uma ruga na testa. Mexeu-se para
sacudir o chapéu de couro nas ventas do agressor. Com uma pancada certa do
chapéu de couro, aquele tico de gente ia ao barro. Olhou as coisas e as pessoas
em roda e moderou a indignação. Na catinga ele as vezes cantava de galo, mas na
rua encolhia-se.
–
Vossemecê não tem direito de provocar os que estão quietos.
–
Desafasta, bradou o polícia.
E
insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir.
–
Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemecê esbagaçar os seus
possuídos no jogo?
Engasgou-se.
A autoridade rondou por ali um instante, desejosa de puxar questão. Não achando
pretexto, avizinhou-se e plantou o salto da reiúna em cima da alpercata do
vaqueiro.
–
Isso não se faz, moço, protestou Fabiano. Estou quieto. Veja que mole e quente
é pé de gente.
O
outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientou-se e xingou a mãe dele.
Aí o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o
jatobá.
–
Toca pra frente, berrou o cabo.
Fabiano
marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação
medonha e não se defendeu.
–
Está certo, disse o cabo. Faça lombo, paisano.
Fabiano
caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão bateu-lhe no peito, outra
nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão que o arremessou
para as trevas do cárcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueu-se
atordoado, cambaleou, sentou-se num canto, rosnando
–
Hum! hum!
Porque
tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons costumes, sim
senhor, nunca fora preso. De repente um fuzuê sem motivo. Achava-se tão
perturbado que nem acreditava naquela desgraça. Tinham-lhe caído todos em cima,
de supetão, como uns condenados. Assim um homem não podia resistir.
–
Bem, bem.
Passou
as mãos nas costas e no peito, sentiu-se moído, os olhos azulados brilharam
como olhos de gato. Tinham-no realmente surrado e prendido. Mas era um caso tão
esquisito que instantes depois balançava a cabeça, duvidando, apesar das
machucaduras.
Ora,
o soldado amarelo... Sim, havia um amarelo, criatura desgraçada que ele,
Fabiano, desmancharia com um tabefe. Não tinha desmanchado por causa dos homens
que mandavam. Cuspiu, com desprezo:
–
Safado, mofino, escarro de gente.
Por
mor de uma peste daquela, maltratava-se um pai de família. Pensou na mulher,
nos filhos e na cachorrinha. Engatinhando, procurou os alforjes, que haviam
caído no chão, certificou-se de que os objetos comprados na feira estavam todos
ali. Podia ter-se perdido alguma coisa na confusão. Lembrou-se de uma fazenda
vista na última das lojas que visitara. Bonita, encorpada, larga, vermelha e
com ramagens, exatamente o que Sinha Vitória desejava. Encolhendo um tostão em
côvado, por sovinice, acabava o dia daquele jeito.
Tornou
a mexer nos alforjes. Sinha Vitória devia estar desassossegada com a demora
dele. A casa no escuro, os meninos em redor do fogo, a cachorra Baleia
vigiando. Com certeza haviam fechado a porta da frente.
Estirou
as pernas, encostou as carnes doídas ao muro. Se lhe tivessem dado tempo, ele
teria explicado tudo direitinho.
Mas
pegado de surpresa, embatucara. Quem não ficaria azuretado com semelhante
despropósito? Não queria capacitar-se de que a malvadez tivesse sido para ele.
Havia engano, provavelmente o amarelo o confundira com outro. Não era senão
isso.
Então
porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se
pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as
violências, a todas as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e
agüentavam cipó de boi oferecia consolações: – "Tenha paciência. Apanhar
do governo não é desfeita.”
Mas
agora rangia os dentes, soprava. Merecia castigo?
–
An!
E,
por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo fosse
governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar. O soldado amarelo
estava ali perto, além da grade,. era fraco e ruim, jogava na esteira com os
matutos e provocava-os depois. O governo não devia consentir tão grande
safadeza.
Afinal
para que serviam os soldados amarelos? Deu um pontapé na parede, gritou
enfurecido. Para que serviam os soldados amarelos? Os outros presos
remexeram-se, o carcereiro chegou à grade, e Fabiano acalmou-se:
–
Bem, bem. Não há nada não.
Havia
muitas coisas. Ele não podia explicá-las, mas havia. Fossem perguntar a seu
Tomás da bolandeira, que lia livros e sabia onde tinha as ventas. Seu Tomás da
bolandeira contaria aquela história. Ele, Fabiano, um bruto, não contava nada.
Só queria voltar para junto de Sinha Vitória, deitar-se na cama de varas.
Porque vinham bulir com um homem que só queria descansar? Deviam bulir com
outros.
–
An!
Estava
tudo errado.
–
An!
Tinham
lá coragem? Imaginou o soldado amarelo atirando-se a um cangaceiro na catinga.
Tinha graça. Não dava um caldo.
Lembrou-se
da casa velha onde morava, da cozinha, da panela que chiava na trempe de
pedras. Sinha Vitória punha sal na comida. Abriu os alforjes novamente: a
trouxa de sal não se tinha perdido. Bem. Sinha Vitória provava o caldo na
quenga de coco. E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e da cachorra
Baleia, que era como uma pessoa da família, sabida como gente. Naquela viagem
arrastada, em tempo de seca braba, quando estavam todos morrendo de fome, a
cadelinha tinha trazido para eles um preá. Ia envelhecendo, coitada. Sinha
Vitória, inquieta, com certeza fora muitas vezes escutar na porta da frente. O
galo batia as asas, os bichos bodejavam no chiqueiro, os chocalhos das vacas
tiniam.
Se
não fosse isso... An! Em que estava pensando? Meteu os olhos pela grade da rua.
Chi! que pretume! O lampião da esquina se apagara, provavelmente o homem da
escada só botara nele meio quarteirão de querosene.
Pobre
de Sinha Vitória, cheia de cuidados, na escuridão. Os meninos sentados perto do
lume, a panela chiando na trempe de pedras, Baleia atenta, o candeeiro de folha
pendurado na ponta de uma vara que saía da parede.
Estava
tão cansado, tão machucado, que ia quase adormecendo no meio daquela desgraça.
Havia ali um bêbedo tresvariando em voz alta e alguns homens agachados em redor
de um fogo que enchia o cárcere de fumaça. Discutiam e queixavam-se da lenha
molhada.
Fabiano
cochilava, a cabeça pesada inclinava-se para o peito e levantava-se. Devia ter
comprado o querosene de seu Inácio. A mulher e os meninos agüentando fumaça nos
olhos.
Acordou
sobressaltado. Pois não estava misturando as pessoas, desatinando? Talvez fosse
efeito da cachaça. Não era: tinha bebido um copo, tanto assim, quatro dedos. Se
lhe dessem tempo, contaria o que se passara.
Ouviu
o falatório desconexo do bêbedo, caiu numa indecisão dolorosa. Ele também dizia
palavras sem sentido, conversava à toa. Mas irou-se com a comparação, deu
marradas na parede. Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia
explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia
porque ele não sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando
como um escravo. Desentupia o bebedouro, consertava as cercas, curava os
animais – aproveitara um casco de fazenda sem valor. Tudo em ordem, podiam ver.
Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa?
Se
não fosse aquilo... Nem sabia. O fio da idéia cresceu, engrossou – e partiu-se.
Difícil pensar. Vivia tão agarrado aos bichos. .. Nunca vira uma escola. Por
isso não conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demônio
daquela história entrava-lhe na cabeça e saía. Era para um cristão endoidecer.
Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entendê-la. Impossível, só
sabia lidar com bichos.
Enfim,
contanto... Seu Tomás daria informações. Fossem perguntar a ele. Homem bom, seu
Tomás da bolandeira, homem aprendido. Cada qual como Deus o fez. Ele, Fabiano,
era aquilo mesmo, um bruto.
O
que desejava... An! Esquecia-se. Agora se recordava da viagem que tinha feito
pelo sertão a cair de fome. As pernas dos meninos eram finas como bilros, Sinha
Vitória tropicava debaixo do baú de trens. Na beira do rio haviam comido
o papagaio, que não sabia falar. Necessidade.
Fabiano
também não sabia falar. As vezes largava nomes arrevesados, por embromação. Via
perfeitamente que tudo era besteira. Não podia arrumar o que tinha no interior.
Se pudesse... Ah! Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancam as
criaturas inofensivas.
Bateu
na cabeça, apertou-a. Que faziam aqueles sujeitos acocorados em torno do fogo?
Que dizia aquele bêbedo que se esgoelava como um doido, gastando fôlego à toa?
Sentiu vontade de gritar, de anunciar muito alto que eles não prestavam para
nada. Ouviu uma voz fina. Alguém no xadrez das mulheres chorava e arrenegava as
pulgas. Rapariga da vida, certamente de porta aberta. Essa também não prestava
para nada. Fabiano queria berrar para a cidade inteira, afirmar ao doutor juiz
de direito, ao delegado, a seu vigário e aos cobradores da prefeitura que ali
dentro ninguém prestava para nada. Ele, os homens acocorados, o bêbedo, a
mulher das pulgas, tudo era uma lástima, só servia para agüentar facão. Era o
que ele queria dizer.
E
havia também aquele fogo-corredor que ia e vinha no espírito dele. Sim, havia
aquilo. Como era? Precisava descansar. Estava com a testa doendo, provavelmente
em conseqüência de uma pancada de cabo de facão. E doía-lhe. a cabeça toda,
parecia-lhe que tinha fogo por dentro, parecia-lhe que tinha nos miolos uma
panela fervendo.
Pobre
de Sinha Vitória, inquieta e sossegando os meninos. Baleia vigiando, perto da
trempe. Se não fossem eles...
Agora
Fabiano conseguia arranjar as idéias. O que o segurava era a família. Vivia
preso como um novilho amarrado ao mourão, suportando ferro quente. Se não fosse
isso, um soldado amarelo não lhe pisava o pé não. O que lhe amolecia o corpo
era a lembrança da mulher e dos filhos. Sem aqueles cambões pesados, não
envergaria o espinhaço não, sairia dali como onça e faria uma asneira.
Carregaria a espingarda e daria um tiro de pé de pau no soldado amarelo. Não. O
soldado amarelo era um infeliz que nem merecia um tabefe com as costas da mão.
Mataria os donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago nos
homens que dirigiam o soldado amarelo. Não ficaria um para semente. Era a idéia
que lhe fervia na cabeça. Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a
cachorrinha.
Fabiano
gritou, assustando o bêbedo, os tipos que abanavam o fogo, o carcereiro e a
mulher que se queixava das pulgas. Tinha aqueles cambões pendurados ao pescoço.
Deveria continuar a arrastá-los? Sinha Vitória dormia mal na cama de varas. Os
meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as reses de
um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado
amarelo.
Capítulo
IV – Sinha Vitória
Acocorada
junto às pedras que serviam de trempe, a saia de ramagens entalada entre as
coxas, Sinha Vitória soprava o fogo. Uma nuvem de cinza voou dos tições e
cobriu-lhe a cara, a fumaça inundou-lhe os olhos, o rosário de contas brancas e
azuis desprendeu-se do cabeção e bateu na panela. Sinha Vitória limpou as
lágrimas com as costas das mãos, encarquilhou as pálpebras, meteu o rosário no
seio e continuou a soprar com vontade, enchendo muito as bochechas.
Labaredas
lamberam as achas de angico, esmoreceram, tornaram a levantar-se e
espalharam-se entre as pedras. Sinha Vitória aprumou o espinhaço e agitou o
abano. Uma chuva de faíscas mergulhou num banho luminoso a cachorra Baleia, que
se enroscava no calor e cochilava embalada pelas emanações da comida.
Sentindo
a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos, Baleia despertou, retirou-se
prudentemente, receosa de sapecar o pêlo, e ficou observando maravilhada as
estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um
movimento de cauda aquele fenômeno e desejou expressar a sua admiração à dona.
Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras,
imitando gente. Mas Sinha Vitória não queria saber de elogios.
–
Arreda!
Deu
um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada e com sentimentos
revolucionários.
Sinha
Vitória tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de propósito, dissera ao marido
umas inconveniências a respeito da cama de varas. Fabiano, que não esperava
semelhante desatino, apenas grunhira: – "Hum! hum!" E amunhecara,
porque realmente mulher é bicho difícil de entender, deitara-se na rede e
pegara no sono. Sinha Vitória andara para cima e para baixo, procurando em que
desabafar. Como achasse tudo em ordem, queixara-se da vida. E agora vingava-se
em Baleia, dando-lhe um pontapé.
Avizinhou-se
da janela baixa da cozinha, viu os meninos, entretidos no barreiro, sujos de
lama, fabricando bois de barro, que secavam ao sol, sob o pé de turco, e não
encontrou motivo para repreendê-los. Pensou de novo na cama de varas e
mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-se acostumado, mas seria
mais agradável dormirem numa cama de lastro de couro, como outras pessoas.
Fazia
mais de um ano que falava nisso ao marido. Fabiano a princípio concordara com
ela, mastigara cálculos, tudo errado. Tanto para o couro, tanto para a armação.
Bem. Poderiam adquirir o móvel necessário economizando na roupa e no querosene.
Sinha Vitória respondera que isso era impossível, porque eles vestiam mal, as
crianças andavam nuas, e recolhiam-se todos ao anoitecer. Para bem dizer, não
se acendiam candeeiros na casa. Tinham discutido, procurando cortar outras
despesas. Como não se entendessem, Sinha Vitória aludira, bastante azeda, ao
dinheiro gasto pelo marido na feira, com jogo e cachaça. Ressentido, Fabiano condenara
os sapatos de verniz que ela usava nas festas, caros e inúteis. Calçada
naquilo, trôpega, mexia-se como um papagaio, era ridícula. Sinha Vitória
ofendera-se gravemente com a comparação, e se não fosse o respeito que Fabiano
lhe inspirava, teria despropositado. Efetivamente os sapatos apertavam-lhe os
dedos, faziam-lhe calos. Equilibrava-se mal, tropeçava, manquejava, trepada nos
saltos de meio palmo. Devia ser ridícula, mas a opinião de Fabiano
entristecera-a muito.
Desfeitas
essas nuvens, curtidos os dissabores, a cama de novo lhe aparecera no horizonte
acanhado.
Agora
pensava nela de mau humor. Julgava-a inatingível e misturava-a às obrigações da
casa.
Foi
a sala, passou por baixo do punho da rede onde Fabiano roncava, tirou do caritó
o cachimbo e uma pele de fumo, saiu para o copiar. O chocalho da vaca laranja
tilintou para os lados do rio. Fabiano era capaz de se ter esquecido de curar a
vaca laranja. Quis acordá-lo e perguntar, mas distraiu-se olhando os
xiquexiques e os mandacarus que avultavam na campina.
Um
mormaço levantava-se da terra queimada. Estremeceu lembrando-se da seca, o
rosto moreno desbotou, os olhos pretos arregalaram-se. Diligenciou afastar a
recordação, temendo que ela virasse realidade. Rezou baixinho uma ave-maria, já
tranqüila, a atenção desviada para um buraco que havia na cerca do chiqueiro
das cabras. Esfarelou a pele de fumo entre as palmas das mãos grossas, encheu o
cachimbo de barro, foi consertar a cerca. Voltou, circulou a casa atravessando
o cercadinho do oitão, entrou na cozinha.
–
É capaz de Fabiano ter-se esquecido da vaca laranja.
Agachou-se,
atiçou o fogo, apanhou uma brasa com a colher, acendeu o cachimbo, pôs-se a
chupar o canudo de taquari cheio de sarro. Jogou longe uma cusparada, que
passou por cima da janela e foi cair no terreiro. Preparou-se para cuspir
novamente. Por uma extravagante associação, relacionou esse ato com a lembrança
da cama. Se o cuspo alcançasse o terreiro, a cama seria comprada antes do fim
do ano. Encheu a boca de saliva, inclinou-se – e não conseguiu o que esperava.
Fez várias tentativas, inutilmente. O resultado foi secar a garganta. Ergueu-se
desapontada. Besteira, aquilo não valia.
Aproximou-se
do canto onde o pote se erguia numa forquilha de três pontas, bebeu um caneco
de água. Água salobra.
–
Ixe!
Isto
lhe sugeriu duas imagens quase simultâneas, que se confundiram e neutralizaram:
panelas e bebedouros. Encostou o fura-bolos à testa, indecisa. Em que estava
pensando? Olhou o chão, concentrada, procurando recordar-se, viu os pés chatos,
largos, os dedos separados. De repente as duas idéias voltaram: o bebedouro
secava, a panela não tinha sido temperada.
Foi
levantar o testo, recebeu na cara vermelha uma baforada de vapor. Não é que ia
deixando a comida esturrar? Pôs água nela e remexeu-a com a quenga preta de
coco. Em seguida provou o caldo. Insosso, nem parecia bóia de cristão.
Chegou-se ao jirau onde se guardavam cumbucos e mantas de carne, abriu a
mochila de sal, tirou um punhado, jogou-o na panela.
Agora
pensava no bebedouro, onde havia um líquido escuro que bicho enjeitava. Só
tinha medo da seca.
Olhou
de novo os pés espalmados. Efetivamente não se acostumava a calçar sapatos, mas
o remoque de Fabiano molestara-a. Pés de papagaio. Isso mesmo, sem dúvida,
matuto anda assim. Para que fazer vergonha à gente? Arreliava-se com a
comparação.
Pobre
do papagaio. Viajar com ela, na gaiola que balançava em cima do baú de folha.
Gaguejava: – "Meu louro." Era o que sabia dizer. Fora isso, aboiava
arremedando Fabiano e latia como Baleia. Coitado. Sinha Vitória nem queria
lembrar-se daquilo. Esquecera a vida antiga, era como se tivesse nascido depois
que chegara à fazenda. A referência aos sapatos abrira-lhe uma ferida – e a
viagem reaparecera. As alpercatas dela tinham sido gastas nas pedras. Cansada,
meio morta de fome, carregava o filho mais novo, o baú e a gaiola do papagaio.
Fabiano era ruim.
–
Mal-agradecido.
Olhou
os pés novamente. Pobre do louro. Na beira do rio matara-o por necessidade,
para sustento da família. Naquele momento ele estava zangado, fitava na
cachorrinha as pupilas sérias e caminhava aos tombos, como os matutos em dias
de festa. Para que Fabiano fora despertar-lhe aquela recordação?
Chegou
à porta, olhou as folhas amarelas das catingueiras. Suspirou. Deus não havia de
permitir outra desgraça. Agitou a cabeça e procurou ocupações para entreter-se.
Tomou a cuia grande, encaminhou-se ao barreiro, encheu de água o caco das
galinhas, endireitou o poleiro. Em seguida foi ao quintalzinho regar os
craveiros e as panelas de losna. E botou os filhos para dentro de casa, que
tinham barro até nas meninas dos olhos. Repreendeu-os:
–
Safadinhos! porcos! sujos como...
Deteve-se.
Ia dizer que eles estavam sujos como papagaios.
Os
pequenos fugiram, foram enrolar-se na esteira da sala, por baixo do caritó, e
Sinha Vitória voltou para junto da trempe, reacendeu o cachimbo. A panela
chiava; um vento morno e empoeirado sacudia as teias de aranha e as cortinas de
pucumã do teto; Baleia, sob o jirau, coçava-se com os dentes e pegava moscas.
Ouviam-se distintamente os roncos de Fabiano, compassados, e o ritmo deles
influiu nas idéias de Sinha Vitória. Fabiano roncava com segurança.
Provavelmente não havia perigo, a seca devia estar longe.
Outra
vez Sinha Vitória pôs-se a sonhar com a cama de lastro de couro. Mas o sonho se
ligava à recordação do papagaio, e foi-lhe preciso um grande esforço para
isolar o objeto de seu desejo.
Tudo
ali era estável, seguro. O sono de Fabiano, o fogo que estalava, o toque dos
chocalhos, até o zumbido das moscas davam-lhe sensação de firmeza e repouso.
Tinha de passar a vida inteira dormindo em varas? Bem no meio do catre havia um
nó, um calombo grosso na madeira. E ela se encolhia num canto, o marido no outro,
não podiam estirar-se no centro. A princípio não se incomodara. Bamba,
moída de trabalhos, deitar-se-ia em pregos. Viera, porém, um começo de
prosperidade. Corriam, engordavam. Não possuíam nada: se retirassem, levariam a
roupa, a espingarda, o baú de folha e troças miúdos. Mas iam vivendo, na graça
de Deus, o patrão confiava neles – e eram quase felizes. Só faltava uma cama.
Era o que aperreava Sinha Vitória. Como já não se estazava em serviços
pesados, gastava um pedaço da noite parafusando. E o costume de encafuar-se ao
escurecer não estava certo, que ninguém é galinha.
Nesse
ponto as idéias de Sinha Vitória seguiram outro caminho, que pouco depois foi
desembocar no primeiro. Não era que a raposa tinha passado no rabo a galinha
pedrês? Logo a pedrês, a mais gorda. Decidiu armar um mundéu perto do poleiro.
Encolerizou-se. A raposa pagaria a galinha pedrês.
–
Ladrona.
Pouco
a pouco a zanga se transferiu. Os roncos de Fabiano eram insuportáveis. Não
havia homem que roncasse tanto. Era bom levantar-se e procurar uma vara para
substituir aquele pau amaldiçoado que não deixava uma pessoa virar-se. Porque
não tinham removido aquela vara incômoda? Suspirou. Não conseguiam tomar
resolução. Paciência. Era melhor esquecer o nó e pensar numa cama igual à de
seu Tomás da bolandeira. Seu Tomás tinha uma cama de verdade, feita pelo
carpinteiro, um estrado de sucupira alisado a enxó, com as juntas abertas a
formão, tudo embutido direito, e um couro cru em cima, bem esticado e bem
pregado. Ali podia um cristão estirar os ossos.
Se
vendesse as galinhas e a marrã? Infelizmente a excomungada raposa tinha comido
a pedrês, a mais gorda. Precisava dar uma lição à raposa. Ia armar o mundéu
junto do poleiro e quebrar o espinhaço daquela sem-vergonha.
Ergueu-se,
foi a camarinha procurar qualquer coisa, voltou desanimada e esquecida. Onde
tinha a cabeça?
Sentou-se
na janela baixa da cozinha, desgostosa. Venderia as galinhas e a marrã,
deixaria de comprar querosene. Inútil consultar Fabiano, que sempre se
entusiasmava, arrumava projetos. Esfriava logo – e ela franzia a testa,
espantada; certa de que o marido se satisfazia com a idéia de possuir uma cama.
Sinha Vitória desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual à de seu Tomás
da bolandeira.
Capítulo
V – O Menino Mais Novo
A
idéia surgiu-lhe na tarde em que Fabiano botou os arreios na égua alazã e
entrou a amansá-la. Não era propriamente idéia: era o desejo vago de realizar
qualquer ação notável que espantasse o irmão e a cachorra Baleia.
Naquele
momento Fabiano lhe causava grande admiração. Metido nos couros, de perneiras,
gibão e guarda-peito, era a criatura mais importante do mundo. As rosetas das
esporas dele tilintavam no pátio; as abas do chapéu, jogado para trás, preso
debaixo do queixo pela correia, aumentavam-lhe o rosto queimado, faziam-lhe um
círculo enorme em torno da cabeça.
O
animal estava selado, os estribos amarrados na garupa, e Sinha Vitória
subjugava-o agarrando-lhe os beiços. O vaqueiro apertou a cilha e posse a andar
em redor, fiscalizando os arranjos, lento. Sem se apressar, livrou-se de um
coice : virou o corpo, os cascos da égua passaram-lhe rente ao peito, raspando
o gibão. Em seguida Fabiano subiu ao copiar, saltou na sela, a mulher recuou –
e foi um redemoinho na catinga.
Trepado
na porteira do curral, o menino mais novo torcia as mãos suadas, estirava-se
para ver a nuvem de poeira que toldava as imburanas. Ficou assim uma
eternidade, cheio de alegria e medo, até que a égua voltou e começou a pular
furiosamente no pátio, como se tivesse o diabo no corpo. De repente a cilha
rebentou e houve um desmoronamento. O pequeno deu um grito, ia tombar da
porteira. Mas sossegou logo. Fabiano tinha caído em pé e recolhia-se banzeiro e
cambaio, os arreios no braço. Os estribos, soltos na carreira desesperada,
batiam um no outro, as rosetas das esporas tiniam.
Sinha
Vitória cachimbava tranqüila no banco do copiar, catando lêndeas no filho mais
velho. Não se conformando com semelhante indiferença depois da façanha do pai,
o menino foi acordar Baleia, que preguiçava, a barriguinha vermelha descoberta,
sem-vergonha. A cachorra abriu um olho, encostou a cabeça à pedra de amolar,
bocejou e pegou no sono de novo.
Julgou-a
estúpida e egoísta, deixou-a, indignado, foi puxar a manga do vestido da mãe,
desejando comunicar-se com ela. Sinha Vitória soltou uma exclamação de
aborrecimento, e, como o pirralho insistisse, deu-lhe um cascudo.
Retirou-se
zangado, encostou-se num esteio do alpendre, achando o mundo todo ruim e
insensato. Dirigiu-se ao chiqueiro, onde os bichos bodejavam, fungando,
erguendo os focinhos franzidos. Aquilo era tão engraçado que o egoísmo de
Baleia e o mau humor de Sinha Vitória desapareceram. A admiração a Fabiano é
que ia ficando maior.
Esqueceu
desentendimentos e grosserias, um entusiasmo verdadeiro encheu-lhe a alma
pequenina. Apesar de ter medo do pai, chegou-se a ele devagar, esfregou-se nas
perneiras, tocou as abas do gibão. As perneiras, o gibão, o guarda-peito, as
esporas e o barbicacho do chapéu maravilhavam-no.
Fabiano
desviou-o desatento, entrou na sala e foi despojar-se daquela grandeza.
O
menino deitou-se na esteira, enrolou-se e fechou os olhos. Fabiano era
terrível. No chão, despidos os couros, reduzia-se bastante, mas no lombo da
égua alazã era terrível.
Dormiu
e sonhou. Um pé-de-vento cobria de poeira a folhagem das imburanas, Sinha
Vitória catava piolhos no filho mais velho. Baleia descansava a cabeça na pedra
de amolar.
No
dia seguinte essas imagens se varreram completamente. Os juazeiros do fim do
pátio estavam escuros, destoavam das outras árvores. Por que seria?
Aproximou-se
do chiqueiro das cabras, viu o bode velho fazendo um barulho feio com as ventas
arregaçadas, lembrou-se do acontecimento da véspera. Encaminhou-se aos
juazeiros, curvado, espiando os rastos da égua alazã.
A
hora do almoço Sinha Vitória repreendeu-o:
–
Este capeta anda leso.
Ergueu-se,
deixou a cozinha, foi contemplar as perneiras, o guarda-peito e o gibão
pendurados num torno da sala. Daí marchou para o chiqueiro – e o projeto
nasceu.
Arredou-se,
fez tenção de entender-se com alguém, mas ignorava o que pretendia dizer. A
égua alazã e o bode misturavam-se, ele e o pai misturavam-se também.
Rodeou
o chiqueiro, mexendo-se como um urubu, arremedando Fabiano.
A
necessidade de consultar o irmão apareceu e desapareceu.
O
outro iria rir-se, mangar dele, avisar Sinha Vitória. Teve medo do riso e da
mangação. Se falasse naquilo, Sinha Vitória lhe puxaria as orelhas.
Evidentemente
ele não era Fabiano. Mas se fosse? Precisava mostrar que podia ser Fabiano.
Conversando, talvez conseguisse explicar-se.
Pôs-se
a caminhar, banzeiro, até que o irmão e Baleia levaram as cabras ao bebedouro.
A porteira abriu-se, um fartum espalhou-se pelos arredores, os chocalhos
soaram, a camiSinha de algodão atravessou o pátio, contornou as pedras onde se
atiravam cobras mortas, passou os juazeiros, desceu a ladeira, alcançou a
margem do rio.
Agora
as cabras se empurravam metendo os focinhos na água, os cornos
entrechocavam-se. Baleia, atarefada, latia correndo.
Trepado
na ribanceira, o coração aos baques, o menino mais novo esperava que o bode
chegasse ao bebedouro. Certamente aquilo era arriscado, mas parecia-lhe que ali
em cima tinha crescido e podia virar Fabiano.
Sentou-se
indeciso. O bode ia saltar e derrubá-lo.
Ergueu-se,
afastou-se, quase livre da tentação, viu um bando de periquitos que voava sobre
as catingueiras. Desejou possuir um deles, amarrá-lo com uma embira, dar-lhe
comida. Sumiram-se todos chiando, e o pequeno ficou triste, espiando o céu
cheio de nuvens brancas. Algumas eram carneirinhos, mas desmanchavam-se e
tornavam-se bichos diferentes. Duas grandes se juntaram – e uma tinha a figura
da égua alazã, a outra representava Fabiano.
Baixou
os olhos encandeados, esfregou-os, aproximou-se novamente da ribanceira,
distinguiu a massa confusa do rebanho, ouviu as pancadas dos chifres. Se o bode
já tivesse bebido, ele experimentaria decepção. Examinou as pernas finas, a
camiSinha encardida e rasgada. Enxergara viventes no céu, considerava-se
protegido, convencia-se de que forças misteriosas iam ampará-lo. Boiaria no ar,
como um periquito.
Pôs-se
a berrar, imitando as cabras, chamando o irmão e a cachorra. Não obtendo
resultado, indignou-se. Ia mostrar aos dois uma proeza, voltariam para casa
espantados.
Aí
o bode se avizinhou e meteu o focinho na água. O menino despenhou-se da
ribanceira, escanchou-se no espinhaço dele.
Mergulhou
no pelame fofo, escorregou, tentou em vão segurar-se com os calcanhares, foi
atirado para a frente, voltou, achou-se montado na garupa do animal, que
saltava demais e provavelmente se distanciava do bebedouro. Inclinou-se para um
lado, mas fortemente sacudido, retomou a posição vertical, entrou a dançar
desengonçado, as pernas abertas, os braços inúteis. Outra vez impelido para a
frente, deu um salto mortal, passou por cima da cabeça do bode, aumentou o
rasgão da camisa numa das pontas e estirou-se na areia. Ficou ali estatelado,
quietinho, um zunzum nos ouvidos, percebendo vagamente que escapara sem honra
da aventura.
Viu
as nuvens que se desmanchavam no céu azul, embirrou com elas. Interessou-se
pelo vôo dos urubus. Debaixo dos couros, Fabiano andava banzeiro, pesado,
direitinho um urubu.
Sentou-se,
apalpou as juntas doídas. Fora sacolejado violentamente, parecia-lhe que os
ossos estavam deslocados.
Olhou
com raiva o irmão e a cachorra. Deviam tê-lo prevenido. Não descobriu neles
nenhum sinal de solidariedade : o irmão ria como um doido, Baleia, séria,
desaprovava tudo aquilo. Achou-se abandonado e mesquinho, exposto a quedas,
coices e marradas.
Ergueu-se,
arrastou-se com desânimo até a cerca do bebedouro, encostou-se a ela, o rosto
virado para a água barrenta, o coração esmorecido. Meteu os dedos finos pelo
rasgão, coçou o peito magro. O tropel das cabras perdeu-se na ladeira, a
cachorrinha ladrou longe. Como estariam as nuvens? Provavelmente algumas se
transformavam em carneirinhos, outras eram como bichos desconhecidos.
Lembrou-se
de Fabiano e procurou esquecê-lo. Com certeza Fabiano e Sinha Vitória iam
castigá-lo por causa do acidente. Levantou os olhos tímidos. A lua tinha aparecido,
engrossava, acompanhada por uma estrelinha quase invisível. Aquela hora os
Periquitos descansavam na vazante, nas touceiras secas de milho. Se possuísse
um daqueles periquitos, seria feliz.
Baixou
a cabeça, tornou a olhar a poça escura que o gado esvaziara. Uns riachos miúdos
marejavam na areia como artérias abertas de animais. Recordou-se das cabras
abatidas a mão de pilão, penduradas de cabeça para baixo num caibro do copiar,
sangrando.
Retirou-se.
A humilhação atenuou-se pouco a pouco e morreu. Precisava entrar em casa,
jantar, dormir. E precisava crescer, ficar tão grande como Fabiano, matar
cabras a mão de pilão, trazer uma faca de ponta à cintura. Ia crescer,
espichar-se numa cama de varas, fumar cigarros de palha, calçar sapatos de
couro cru.
Subiu
a ladeira, chegou-se a casa devagar, entortando as pernas, banzeiro. Quando
fosse homem, caminharia assim, pesado, cambaio, importante, as rosetas das
esporas tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga
como pé-de-vento, levantando poeira. Ao regressar, apear-se-ia num pulo e
andaria no pátio assim torto, de perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de
couro com barbicacho. O menino mais velho e Baleia ficariam admirados.
Capítulo
VI – O Menino Mais Velho
Deu-se
aquilo porque Sinha Vitória não conversou um instante com o menino mais velho.
Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando "a linguagem de Sinha
Terta, pediu informações. Sinha Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo
lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros.
O
menino foi à sala interrogar o pai, encontrou-o sentado no chão, com as pernas
abertas, desenrolando um meio de sola.
–
Bota o pé aqui.
A
ordem se cumpriu e Fabiano tomou medida da alpercata : deu um traço com a ponta
da faca atrás do calcanhar, outro adiante do dedo grande. Riscou em seguida a
forma do calçado e bateu palmas
–
Arreda.
O
pequeno afastou-se um pouco, mas ficou por ali rondando e timidamente arriscou
a pergunta. Não obteve resposta, voltou à cozinha, foi pendurar-se à saia da
mãe:
–
Como é?
Sinha
Vitória falou em espetos quentes e fogueiras.
–
A senhora viu?
Aí
Sinha Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote.
O
menino saiu indignado com a injustiça, atravessou o terreiro, escondeu-se
debaixo das catingueiras murchas, à beira da lagoa vazia.
A
cachorra Baleia acompanhou-o naquela hora difícil. Repousava junto à trempe,
cochilando no calor, à espera de um osso. Provavelmente não o receberia, mas
acreditava nos ossos, e o torpor que a embalava era doce. Mexia-se de longe em
longe, punha na dona as pupilas negras onde a confiança brilhava. Admitia a
existência de um osso graúdo na panela, e ninguém lhe tirava esta certeza,
nenhuma inquietação lhe perturbava os desejos moderados. As vezes recebia
pontapés sem motivo. Os pontapés estavam previstos e não dissipavam a imagem do
osso.
Naquele
dia a voz estridente de Sinha Vitória e o cascudo no menino mais velho
arrancaram Baleia da modorra e deram-lhe a suspeita de que as coisas não iam
bem. Foi esconder-se num canto, por detrás do pilão, fazendo-se miúda entre
cumbucos e cestos. Um minuto depois levantou o focinho e procurou orientar-se.
O vento morno que soprava da lagoa fixou-lhe a resolução: esgueirou-se ao longo
da parede, transpôs a janela baixa da cozinha, atravessou o terreiro, passou
pelo pé de turco, topou a camarada, chorando, muito infeliz, à sombra das
catingueiras. Tentou minorar-lhe o padecimento saltando em roda e balançando a
cauda. Não podia sentir dor excessiva. E como nunca se impacientava, continuou
a pular, ofegante, chamando a atenção do amigo. Afinal convenceu-o de que o
procedimento dele era inútil.
O
pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da cachorra, pôs-se a
contar-lhe baixinho uma história. Tinha um vocabulário quase tão minguado como
o do papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de
gestos, Baleia respondia com o rabo, com a língua, com movimentos fáceis de
entender.
Todos
o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que lhe mostrava simpatia.
Afagou-a com os dedos magros e sujos, e o animal encolheu-se para sentir bem o
contato agradável, experimentou uma sensação como a que lhe dava a cinza do
borralho.
Continuou
a acariciá-la, aproximou do focinho dela a cara enlameada, olhou bem no fundo
os olhos tranqüilos.
Estivera
metido no barreiro com o irmão, fazendo bichos de barro, lambuzando-se. Deixara
o brinquedo e fora interrogar Sinha Vitória. Um desastre. A culpada era Sinha
Terta, que na véspera, depois de curar com reza a espinhela de Fabiano, soltara
uma palavra esquisita, chiando, o canudo do cachimbo preso nas gengivas
banguelas. Ele tinha querido que a palavra virasse coisa o ficara desapontado
quando a mãe se referira a um lugar ruim, com espetos e fogueiras. Por isso
rezingara, esperando que ela fizesse o inferno transformar-se.
Todos
os lugares conhecidos eram bons: o chiqueiro das cabras, o curral, o barreiro,
o pátio, o bebedouro – mundo onde existiam seres reais, a família do vaqueiro e
os bichos da fazenda. Além havia uma serra distante e azulada, um monte que a
cachorra visitava, caçando preás, veredas quase imperceptíveis na catinga,
moitas o capões de mato, impenetráveis bancos de macambira – e aí fervilhava
uma população de pedras vivas e plantas que procediam como gente. Esses mundos
viviam em paz, às vezes desapareciam as fronteiras, habitantes dos dois lados –
figura. entendiam-se perfeitamente e auxiliavam-se. Existiam sem dúvida em toda
a parte forças maléficas, mas essas forças eram sempre vencidas. E quando
Fabiano amansava brabo, evidentemente uma entidade protetora segurava-o na
sela, indicava-lhe os caminhos menos perigosos, livrava-o dos espinhos e dos
galhos.
Nem
sempre as relações entre as criaturas haviam sido amáveis. Antigamente os
homens tinham fugido à toa, cansados e famintos. Sinha Vitória, com o filho
mais novo escanchado no quarto, equilibrava o baú de folha na cabeça; Fabiano
levava no ombro a espingarda de pederneira; Baleia mostrava as costelas através
do pêlo escasso. Ele, o menino mais velho, caíra no chão que lhe torrava os
pés. Escurecera de repente, os xiquexiques e os mandacarus haviam desaparecido.
Mal sentia as pancadas que Fabiano lhe dava com a bainha da faca de ponta.
Naquele
tempo o mundo era ruim. Mas depois se consertara, para bem dizer as coisas
ruins não tinham existido. No jirau da cozinha arrumavam-se mantas de carne
seca e pedaços de toicinho. A sede não atormentava as pessoas, e à tarde;
aberta a porteira, o gado miúdo corria para o bebedouro. Ossos e seixos
transformavam-se às vezes nos entes que povoavam as moitas, o morro, a serra
distante e os bancos de macambira.
Como
não sabia falar direito, o menino balbuciava expressões complicadas, repetia as
sílabas, imitava os berros dos animais, o barulho do vente, o som dos galhos
que rangiam na catinga, roçando-se. Agora tinha tido a idéia de aprender uma
palavra, com certeza importante porque figurava na conversa de Sinha Terta. Ia
decorá-la e transmiti-la ao irmão e à cachorra. Baleia permaneceria indiferente,
mas o irmão se admiraria, invejoso.
–
Inferno, inferno.
Não
acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim. E
resolvera discutir com Sinha Vitória. Se ela houvesse dito que tinha ido ao
inferno, bem. Sinha Vitória impunha-se, autoridade visível e poderosa. Se
houvesse feito menção de qualquer autoridade invisível e mais poderosa, muito
bem. Mas tentara convencê-la dando-lhe um cocorote, e isto lhe parecia absurdo.
Achava as pancadas naturais quando as pessoas grandes se zangavam, pensava até
que a zanga delas era a causa única dos cascudos e puxavantes de orelhas. Esta
convicção tornava-o desconfiado, fazia-o observar os pais antes de se dirigir a
eles. Animara-se a interrogar Sinha Vitória porque ela estava bem-disposta.
Explicou isto à cachorrinha com abundância de gritos e gestos.
Baleia
detestava expansões violentas: estirou as pernas, fechou os olhos e bocejou.
Para ela os pontapés eram fatos desagradáveis e necessários Só tinha um meio de
evitá-los, a fuga. Mas às vezes apanhavam-na de surpresa, uma extremidade de
alpercata batia-lhe no traseiro – saía latindo, ia esconder-se no mato, com
desejo de morder canelas. Incapaz de realizar o desejo, aquietava-se.
Efetivamente a exaltação do amigo era desarrazoada. Tornou a estirar as pernas
e bocejou de novo. Seria bom dormir.
O
menino beijou-lhe o focinho úmido, embalou-a. A alma dele pôs-se a fazer voltas
em redor da serra azulada e dos bancos de macambira. Fabiano dizia que na serra
havia tocas de suçuaranas. E nos bancos de macambira, rendilhados de espinhos,
surgiam cabeças chatas de jararacas.
Esfregou
as mãos finas, esgaravatou as unhas sujas. Pensou nas figurinhas abandonadas
junto ao barreiro, mas isto lhe trouxe a recordação da palavra infeliz.
Diligenciou afastar do espírito aquela curiosidade funesta, imaginou que não
fizera a pergunta, não recebera portanto o cascudo.
Levantou-se.
Via a janela da cozinha, o cocó de Sinha Vitória, e isto lhe dava pensamentos
maus. Foi sentar-se debaixo de outra árvore, avistou a serra coberta de nuvens.
Ao escurecer a serra misturava-se com o céu e as estrelas andavam em cima dela.
Como era possível haver estrelas na terra?
A
cadelinha chegou-se aos pulos, cheirou-o, lambeu-lhe as mãos e acomodou-se.
Como
era possível haver estrelas na terra?
Entristeceu.
Talvez Sinha Vitória dissesse a verdade. O inferno devia estar cheio de
jararacas e suçuaranas, e as pessoas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões
de orelhas e pancadas com bainha de faca.
Apesar
de ter mudado de lugar, não podia livrar-se da presença de Sinha Vitória.
Repetiu que não havia acontecido nada e tentou pensar nas estrelas que se
acendiam na serra. Inutilmente. Aquela hora as estrelas estavam apagadas.
Sentiu-se
fraco e desamparado, olhou os braços magros, os dedos finos, pôs-se a fazer no
chão desenhos misteriosos. Para que Sinha Vitória tinha dito aquilo?
Abraçou
a cachorrinha com uma violência que a descontentou. Não gostava de ser
apertada, preferia saltar e espojar-se. Farejando a panela, franzia as ventas e
reprovava os modos estranhos do amigo. Um osso grande subia e descia no caldo.
Esta imagem consoladora não a deixava.
O
menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-se para não magoá-lo, sofria a
carícia excessiva. O cheiro dele era bom, mas estava misturado com emanações
que vinham da cozinha. Havia ali um osso. Um osso graúdo, cheio de tutano e com
alguma carne.
Capítulo
VII – Inverno
A
família estava reunida em torno do fogo, Fabiano sentado no pilão caído, Sinha
Vitória de pernas cruzadas, as coxas servindo de travesseiros aos filhos. A
cachorra Baleia, com o traseiro no chão e o resto do corpo levantado, olhava as
brasas que se cobriam de cinza.
Estava
um frio medonho, as goteiras pingavam lá fora, o vento sacudia os ramos das
catingueiras, e o barulho do rio era como um trovão distante.
Fabiano
esfregou as mãos satisfeito e empurrou os tições com a ponta da alpercata. As
brasas estalaram, a cinza caiu, um círculo de luz espalhou-se em redor da
trempe de pedras, clareando vagamente os pés do vaqueiro, os joelhos da mulher
e os meninos deitados. – De quando em quando estes se mexiam, porque o lume era
fraco e apenas aquecia pedaços deles. Outros pedaços esfriavam recebendo o ar
que entrava pelas rachaduras das paredes e pelas gretas da janela. Por isso não
podiam dormir. Quando iam pegando no sono, arrepiavam-se, tinham precisão
de virar-se, chegavam-se à trempe e ouviam a conversa dos pais. Não era
propriamente conversa, eram frases soltas, espaçadas, com repetições e
incongruências. As vezes uma interjeição gutural dava energia ao discurso
ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam
exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito, e as imagens sucediam-se,
deformavam-se, não havia meio de dominá-las. Como os recursos de expressão eram
minguados, tentavam remediar a deficiência falando alto.
Fabiano
tornou a esfregar as mãos e iniciou uma história bastante confusa, mas como só
estavam iluminadas as alpercatas dele, o gesto passou despercebido. O menino
mais velho abriu os ouvidos, atento. Se pudesse ver o rosto do pai,
compreenderia talvez uma parte da narração, mas assim no escuro a dificuldade
era grande. Levantou-se, foi a um canto da cozinha, trouxe de lá uma braçada de
lenha. Sinha Vitória aprovou este ato com um rugido, mas Fabiano condenou a
interrupção, achou que o procedimento do filho revelava falta de respeito e
estirou o braço para castigá-lo. O pequeno escapuliu-se, foi enrolar-se na saia
da mãe, que se pôs francamente do lado dele.
–
Hum! hum! Que brabeza!
Aquele
homem era assim mesmo, tinha o coração perto da goela.
–
Estourado.
Remexeu
as brasas com o cabo da quenga de coco, arrumou entre as pedras achas de angico
molhado, procurou acendê-las. Fabiano ajudou-a: suspendeu a tagarelice, pôs-se
de quatro pés e soprou os carvões, enchendo muito as bochechas. Uma fumarada
invadiu a cozinha, as pessoas tossiram, enxugaram os olhos. Sinha Vitória
manejou o abano, e passado um minuto as labaredas espirraram entre as pedras.
O
círculo de luz aumentou, agora as figuras surgiam na sombra, vermelhas.
Fabiano, visível da barriga para baixo, ia-se tornando indistinto daí para
cima, era um negrume que vagos clarões cortavam. Desse negrume saiu novamente a
parolagem mastigada.
Fabiano
estava de bom humor. Dias antes a enchente havia coberto as marcas postas no
fim da terra de aluvião, alcançava as catingueiras, que deviam estar submersas.
Certamente só apareciam as folhas, a espuma subia, lambendo ribanceiras que se
desmoronavam.
Dentro
em pouco o despotismo de água ia acabar, mas Fabiano não pensava no futuro. Por
enquanto a inundação crescia, matava bichos, ocupava grotas e várzeas. Tudo
muito bem. E Fabiano esfregava as mãos. Não havia o perigo da seca imediata,
que aterrorizara a família durante meses. A catinga amarelecera,
avermelhara-se, o gado principiara a emagrecer e horríveis visões de pesadelo
tinham agitado o sono das pessoas. De repente um traço ligeiro rasgara o céu
para os lados da cabeceira do rio, outros surgiram mais claros, o trovão
roncara perto, na escuridão da meia-noite rolaram nuvens cor de sangue. A
ventania arrancara sucupiras e imburanas, houvera relâmpagos em demasia – e
Sinha Vitória se escondera na camarinha com os filhos, tapando as orelhas,
enrolando-se nas cobertas. Mas aquela brutalidade findara de chofre, a chuva
caíra, a cabeça da cheia aparecera arrastando troncos e animais mortos. A água
tinha subido, alcançado a ladeira, estava com vontade de chegar aos juazeiros
do fim do pátio. Sinha Vitória andava amedrontada. Seria possível que a água
topasse os juazeiros? Se isto acontecesse, a casa seria invadida, os moradores
teriam de subir o morro, viver uns dias no morro, como preás.
Suspirava
atiçando o fogo com o cabo da quenga de coco. Deus não permitiria que sucedesse
tal desgraça.
–
An!
A
casa era forte.
–
An!
Os
esteios de aroeira estavam bem fincados no chão duro. Se o rio chegasse ali,
derrubaria apenas os torrões que formavam o enchimento das paredes de taipa.
Deus protegeria a família.
–
An!
As
varas estavam bem amarradas com cipós nos esteios de aroeira. O arcabouço da
casa resistiria à fúria das águas. E quando elas baixassem, a família
regressaria. Sim, viveriam todos no mato, como preás. Mas voltariam quando as
águas baixassem, tirariam do barreiro terra para vestir o esqueleto da casa.
–
An!
Sinha
Vitória moveu o abano com força para não ouvir o barulho do rio, que se
aproximava. Seria que ele estava com intenção de progredir? O abano zumbia, e o
rumor da enchente era um sopro, um sopro que esmorecia para lá dos juazeiros.
Fabiano
contava façanhas. Começara moderadamente, mas excitara-se pouco a pouco e agora
via os acontecimentos com exagero e otimismo, estava convencido de que
praticara feitos notáveis. Necessitava esta convicção. Algum tempo antes
acontecera aquela desgraça: o soldado amarelo provocara-o na feira, dera-lhe
uma surra de facão e metera-o na cadeia. Fabiano passara semanas capiongo,
fantasiando vinganças, vendo a criação definhar na catinga torrada. Se a seca
chegasse, ele abandonaria mulher e filhos, coseria a facadas o soldado amarelo,
depois mataria o juiz, o promotor e o delegado. Estivera uns dias assim murcho,
pensando na seca e roendo a humilhação. Mas a trovoada roncara, viera a cheia,
e agora as goteiras pingavam, o vento entrava pelos buracos das paredes.
Fabiano
estava contente e esfregava as mãos. Como o frio era grande, aproximou-as das
labaredas. Relatava um fuzuê terrível, esquecia as pancadas e a prisão,
sentia-se capaz de atos importantes.
O
rio subia a ladeira, estava perto dos juazeiros. Não havia notícia de que os
houvesse atingido – e Fabiano, seguro, baseado nas informações dos mais velhos,
narrava uma briga de que saíra vencedor. A briga era sonho, mas Fabiano
acreditava nela.
As
vacas vinham abrigar-se junto à parede da casa, pegada ao curral, a chuva
fustigava-as, os chocalhos batiam. Iriam engordar com o pasto novo, dar crias.
O pasto cresceria no campo, as árvores se enfeitariam, o gado se multiplicaria.
Engordariam todos, ele Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra Baleia.
Talvez Sinha Vitória adquirisse uma cama de lastro de couro. Realmente o jirau
de varas onde se espichavam era incômodo.
Fabiano
gesticulava. Sinha Vitória agitava o abano para sustentar as labaredas no
angico molhado. Os meninos, sentindo frio numa banda e calor na outra, não
podiam dormir e escutavam as lorotas do pai. Começaram a discutir em voz baixa
uma passagem obscura da narrativa. Não conseguiram entender-se, arengaram
azedos, iam se atracando. Fabiano zangou-se com a impertinência deles e quis
puni-los. Depois moderou-se, repisou o trecho incompreensível utilizando
palavras diferentes.
O
menino mais novo bateu palmas, olhou as mãos de Fabiano, que se agitavam por
cima das labaredas, escuras e vermelhas. As costas ficavam na sombra, mas as
palmas estavam iluminadas e cor de sangue. Era como se Fabiano tivesse esfolado
um animal. A barba ruiva e emaranhada estava invisível, os olhos azulados e
imóveis fixavam-se nos tições, a fala dura e rouca entrecortava-se de silêncios.
Sentado no pilão, Fabiano derreava-se, feio e bruto, com aquele jeito de bicho
lerdo que não se agüenta em dois pés.
O
menino mais velho estava descontente. Não podendo perceber as feições do pai,
cerrava os olhos para entendê-lo bem. Mas surgira uma dúvida. Fabiano
modificara a história – e isto reduzia-lhe a verossimilhança. Um desencanto.
Estirou-se e bocejou. Teria sido melhor a repetição das palavras. Altercaria
com o irmão procurando interpretá-las. Brigaria por causa das palavras – e a
sua convicção encorparia. Fabiano devia tê-las repetido. Não. Aparecera uma
variante, o herói tinha-se tornado humano e contraditório. O menino mais velho
recordou-se de um brinquedo antigo, presente de seu Tomás da bolandeira. Fechou
os olhos, reabriu-os, sonolento. O ar que entrava pelas rachas das paredes
esfriava-lhe uma perna, um braço, todo o lado direito. Virou-se, os pedaços de
Fabiano sumiram-se. O brinquedo se quebrara, o pequeno entristecera vendo as
peças inúteis. Lembrou-se dos currais feitos de seixos miúdos, sob as
catingueiras. Agora a lagoa estava cheia, tinha coberto os currais que ele
construíra. O barreiro também se enchera, atingia a parede da cozinha, as águas
dele juntavam-se às da lagoa. Para ir ao quintal onde havia craveiros e panelas
de losna, Sinha Vitória saía pela porta da frente, descia o copiar e
atravessava a porteira de baraúna. Atrás da casa, as cercas, o pé de turco e as
catingueiras estavam dentro da água. As goteiras pingavam, os chocalhos das
vacas tiniam, os sapos cantavam. O som dos chocalhos era familiar, mas a
cantiga dos sapos e o rumor das goteiras causavam estranheza. Tudo estava
mudado. Chovia o dia inteiro, a noite inteira. As moitas e capões de mato onde
viviam seres misteriosos tinham sido violados. Havia lá sapos. E a cantiga
deles subia e descia, uma toada lamentosa enchia os arredores. Tentou contar as
vozes, atrapalhou-se. Eram muitas, com certeza havia uma infinidade de sapos
nas moitas e nos capões. Que estariam fazendo? Por que gritavam a cantoria
gorgolejada e triste? Nunca vira um deles, confundia-os com os habitantes
invisíveis da terra e dos bancos de macambira. Enrolou-se, acomodou-se,
adormeceu, uma banda aquecida pelo fogo, a outra banda protegida pelas nádegas
de Sinha Vitória.
O
abano agitava-se, a madeira úmida chiava, o vulto de Fabiano iluminava-se e
escurecia.
Baleia,
imóvel, paciente, olhava os carvões e esperava que a família se recolhesse.
Enfastiava-a o barulho que Fabiano fazia. No campo, seguindo uma rês, se
esgoelava demais. Natural. Mas ali, a beira do fogo, para 'que tanto grito?
Fabiano estava-se cansando à toa. Baleia se enjoava, cochilava e não podia
dormir. Sinha Vitória devia retirar os carvões e a cinza, varrer o chão,
deitar-se na cama de varas com Fabiano. Os meninos se arrumariam na esteira,
por baixo do caritó, na sala. Era bom que a deixassem em paz. O dia todo
espiava os movimentos das pessoas, tentando adivinhar coisas incompreensíveis.
Agora precisava dormir, livrar-se das pulgas e daquela vigilância a que a
tinham habituado. Varrido o chão com vassourinha, escorregaria entre as pedras,
enroscar-se-ia, adormeceria no calor, sentindo o cheiro das cabras molhadas e
ouvindo rumores desconhecidos, o tique-taque das pingueiras, a cantiga dos
sapos, o sopro do rio cheio. Bichos miúdos e sem dono iriam visitá-la.
Capítulo
VIII – Festa
Fabiano,
Sinha Vitória e os meninos iam à festa de Natal na cidade. Eram três horas,
fazia grande calor, redemoinhos espalhavam por cima das árvores amarelas nuvens
de poeira e folhas secas.
Tinham
fechado a casa, atravessado o pátio, descido a ladeira, e pezunhavam nos seixos
como bois doentes dos cascos. Fabiano, apertado na roupa de brim branco feita
por Sinha Terta, com chapéu de beata, colarinho, gravata, botinas de vaqueta e
elástico, procurava erguer o espinhaço, o que ordinariamente não fazia. Sinha
Vitória, enfronhada no vestido vermelho de ramagens, equilibrava-se mal nos
sapatos de salto enorme. Teimava em calçar-se como as moças da rua – e dava
topadas no caminho. Os meninos estreavam calça e paletó. Em casa sempre usavam
camiSinhas de riscado ou andavam nus. Mas Fabiano tinha comprado dez varas de
pano branco na loja e incumbira Sinha Terta de arranjar farpelas para ele e
para os filhos. Sinha Terta achara pouca a fazenda, e Fabiano se mostrara
desentendido, certo de que a velha pretendia furtar-lhe os retalhos. Em
conseqüência as roupas tinham saído curtas, estreitas e cheias de emendas.
Fabiano
tentava não perceber essas desvantagens. Marchava direito, a barriga para fora,
as costas aprumadas, olhando a serra distante. De ordinário olhava o chão,
evitando as pedras, os tocos, os buracos e as cobras. A posição forçada
cansou-o. E ao pisar a areia do rio, notou que assim não poderia vencer as três
léguas que o separavam da cidade. Descalçou-se, meteu as meias no bolso, tirou
o paletó, a gravata e o colarinho, roncou aliviado. Sinha Vitória decidiu
imitá-lo: arrancou os sapatos e as meias, que amarrou no lenço. Os meninos
puseram as chinelinhas debaixo do braço e sentiram-se à vontade.
A
cachorra Baleia, que vinha atrás, incorporou-se ao grupo. Se ela tivesse
chegado antes provavelmente Fabiano a teria enxotado. E Baleia passaria a festa
junto às cabras que sujavam o copiar. Mas com a gravata e o colarinho
machucados no bolso, o paletó no ombro e as botinas enfiadas num pau, o
vaqueiro achou-se perto dela e acolheu-a.
Retomou
a posição natural: andou cambaio, a cabeça inclinada. Sinha Vitória, os dois
meninos e Baleia acompanharam-no. A tarde foi comida facilmente e ao cair da
noite estavam na beira do riacho, à entrada da rua.
Aí
Fabiano parou, sentou-se, lavou os pés duros, procurando retirar das gretas
fundas o barro que lá havia. Sem se enxugar, tentou calçar-se – e foi uma
dificuldade: os calcanhares das meias de algodão formaram bolos nos peitos dos
pés e as botinas de vaqueta resistiram como virgens. Sinha Vitória levantou a
saia, sentou-se no chão e limpou-se também. Os dois meninos entraram no riacho,
esfregaram os pés, saíram, calçaram as chinelinhas e ficaram espiando os movimentos
dos pais. Sinha Vitória aprontava-se e erguia-se, mas Fabiano soprava
arreliado. Tinha vencido a obstinação de uma daquelas amaldiçoadas botinas; a
outra emperrava, e ele, com os dedos nas alças, fazia esforços inúteis. Sinha
Vitória dava palpites que irritavam o marido. Não havia meio de introduzir o
diabo do calcanhar no tacão. A um arranco mais forte, a alça de trás
rebentou-se, e o vaqueiro meteu as mãos pela borracha, energicamente. Nada
conseguindo, levantou-se resolvido a entrar na rua assim mesmo, coxeando, uma
perna mais comprida que a outra. Com raiva excessiva, a que se misturava alguma
esperança, deu uma patada violenta no chão. A carne comprimiu-se, os ossos
estalaram, a meia molhada rasgou-se e o pé amarrotado se encaixou entre as
paredes de vaqueta. Fabiano soltou um suspiro largo de satisfação e dor. Em
seguida tentou prender o colarinho duro ao pescoço, mas os dedos trêmulos não
realizaram a tarefa. Sinha Vitória auxiliou-o: o botão entrou na casa estreita
e a gravata amarrou-se. As mãos sujas, suadas, deixaram no colarinho manchas
escuras.
–
Está certo, grunhiu Fabiano.
Atravessaram
a pinguela e alcançaram a rua. Sinha Vitória caminhava aos tombos, por causa
dos saltos dos sapatos, e conservava o guarda-chuva suspenso, com o castão para
baixo e a biqueira para cima, enrolada no lenço. Impossível dizer porque Sinha
Vitória levava o guarda-chuva com biqueira para cima e o castão para baixo. Ela
própria não saberia explicar-se, mas sempre vira as outras matutas procederem
assim e adotava o costume.
Fabiano
marchava teso.
Os
dois meninos espiavam os lampiões e adivinhavam casos extraordinários. Não
sentiam curiosidade, sentiam medo, e por isso pisavam devagar, receando chamar
a atenção das pessoas. Supunham que existiam mundos diferentes da fazenda,
mundos maravilhosos na serra azulada. Aquilo, porém, era esquisito. Como podia
haver tantas casas e tanta gente? Com certeza os, homens iriam brigar. Seria
que o povo ali era brabo e não consentia que eles andassem entre as barracas?
Estavam acostumados a agüentar cascudos e puxões de orelhas. Talvez as
criaturas desconhecidas não se comportassem como Sinha Vitória, mas os pequenos
retraíam-se, encostavam-se às paredes, meio encandeados, os ouvidos cheios de
rumores estranhos.
Chegaram
à igreja, entraram. Baleia ficou passeando na calçada, olhando a rua, inquieta.
Na opinião dela, tudo devia estar no escuro, porque era noite, e a gente que
andava no quadro precisava deitar-se. Levantou o focinho, sentiu um cheiro que
lhe deu vontade de tossir. Gritavam demais ali perto e havia luzes em
abundância, mas o que a incomodava era aquele cheiro de fumaça.
Os
meninos também se espantavam. No mundo, subitamente alargado, viam Fabiano e
Sinha Vitória muito reduzidos, menores que as figuras dos altares. Não conheciam
altares, mas presumiam que aqueles objetos deviam ser preciosos. As luzes e os
cantos extasiavam-nos. De luz havia, na fazenda, o fogo entre as pedras da
cozinha e o candeeiro de querosene pendurado pela asa numa vara que saía da
taipa; de canto, o bendito de Sinha Vitória e o aboio de Fabiano. O aboio era
triste, uma cantiga monótona e sem palavras que entorpecia o gado.
Fabiano
estava silencioso, olhando as imagens e as velas acesas, constrangido na roupa
nova, o pescoço esticado, pisando, em brasas. A multidão apertava-o mais que a
roupa, embaraçava-o. De perneiras, gibão – e guarda-peito, andava metido numa
caixa, como tatu, mas saltava no lombo de um bicho e voava na catinga. Agora
não podia virar-se: mãos e braços roçavam-lhe o corpo. Lembrou-se da surra que
levara e da noite passada na cadeia. A sensação que experimentava não diferia
muito da que tinha tido ao ser preso. Era como se as mãos e os braços da
multidão fossem agarrá-lo, subjugá-lo, espremê-lo num canto de parede. Olhou as
caras em redor. Evidentemente as criaturas que se juntavam ali não o viam, mas
Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se em questões e acabar
mal a noite. Soprava e esforçava-se inutilmente por abanar-se com o chapéu.
Difícil mover-se, estava amarrado. Lentamente conseguiu abrir caminho no
povaréu, esgueirou-se até junto da pia de água benta, onde se deteve, receoso
de perder de vista a mulher e os filhos. Ergueu-se nas pontas dos pés, mas isto
lhe arrancou um grunhido: os calcanhares esfolados começavam a afligi-lo.
Distinguiu o cocó de Sinha Vitória, que se escondia atrás de uma coluna.
Provavelmente os meninos estavam com ela. A igreja cada vez mais se enchia.
Para avistar a cabeça da mulher, Fabiano precisava estirar-se, voltar o rosto.
E o colarinho furava-lhe o pescoço. As botinas e o colarinho eram
indispensáveis. Não poderia assistir à novena calçado em alpercatas, a camisa
de algodão aberta, mostrando o peito cabeludo. Seria desrespeito. Como tinha
religião, entrava na igreja uma vez por ano. E sempre vira, desde que se
entendera, roupas de festa assim: calça e paletó engomados, batinas de
elástico, chapéu de baeta, colarinho e gravata. Não se arriscaria a prejudicar
a tradição, embora sofresse com ela. Supunha cumprir um dever, tentava
aprumar-se. Mas a disposição esmorecia: o espinhaço vergava, naturalmente, os
braços mexiam-se desengonçados.
Comparando-se
aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que
os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. Só lhe
falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa. Os negociantes furtavam na
medida, no preço e na conta. O patrão realizava com pena e tinta cálculos
incompreensíveis. Da última vez que se tinham encontrado houvera uma confusão
de números, e Fabiano, com os miolos ardendo, deixara indignado o escritório do
branco, certo de que fora enganado. Todos lhe davam prejuízo. Os caixeiros, os
comerciantes e o proprietário tiravam-lhe o couro, e os que não tinham negócio
com ele riam vendo-o passar nas ruas, tropeçando. Por isso Fabiano se desviava
daqueles viventes. Sabia que a roupa nova cortada e cosida por Sinha Terta, o
colarinho, a gravata, as botinas e o chapéu de baeta o tornavam ridículo, mas
não queria pensar nisto.
–
Preguiçosos, ladrões, faladores, mofinos.
Estava
convencido de que todos os habitantes da cidade eram ruins. Mordeu os beiços.
Não poderia dizer semelhante coisa. Por falta menor agüentara facão e dormira
na cadeia. Ora, o soldado amarelo. .. Sacudiu a cabeça, livrou-se da recordação
desagradável e procurou uma cara amiga na multidão. Se encontrasse um
conhecido, iria chamá-lo para a calçada, abraçá-lo, sorrir, bater palmas.
Depois falaria sobre gado. Estremeceu, tentou ver o cocó de Sinha Vitória.
Precisava ter cuidado para não se distanciar da mulher e dos filhos.
Aproximou-se deles, alcançou-os no momento em que a igreja começava a
esvaziar-se.
Saíram
aos encontrões, desceram os degraus. Empurrado, machucado, Fabiano tornou a
pensar no soldado amarelo. No quadro, ao passar pelo jatobá, virou o rosto. Sem
motivo nenhum, o desgraçado tinha ido provocá-lo, pisar-lhe o pé. Ele se
desviara, com bons modos. Como o outro insistisse, perdera a paciência, tivera
um rompante. Conseqüência: facão no lombo e uma noite de cadeia.
Convidou
a mulher e os filhos para os cavalinhos, arrumou-os, distraiu-se um pouco
vendo-os rodar. Em seguida encaminhou-os as barracas de jogo. Coçou-se, puxou o
lenço, desatou-o, contou o dinheiro, com a tentação de arriscá-lo no bozó. Se
fosse feliz, poderia comprar a cama de couro cru, a sonho de Sinha Vitória. Foi
beber cachaça numa tolda, voltou, pôs-se a rondar indeciso, pedindo com os
olhos a opinião da mulher. Sinha Vitória fez um gesto de reprovação, e Fabiano
retirou-se, lembrando-se do jogo que tivera em casa de seu Inácio, com o
soldado amarelo. Fora roubado, com certeza fora roubado. Avizinhou-se da tolda
e bebeu mais cachaça. Pouca a pouco ficou sem-vergonha.
–
Festa é festa.
Bebeu
ainda uma vez e empertigou-se, olhou as pessoas desafiando-as. Estava resolvido
a fazer uma asneira. Se topasse o soldado amarelo, esbodegava-se com ele. Andou
entre as barracas, emproado, atirando coices no chão, insensível às esfoladuras
dos pés. Queria era desgraçar-se, dar um pano de amostra àquele safado. Não
ligava importância à mulher e aos filhos, que o seguiam.
–
Apareça um homem! berrou.
No
barulho que enchia a praça ninguém notou a provocação. E Fabiano foi
esconder-se por detrás das barracas, para lá dos tabuleiros de doces. Estava
disposto a esbagaçar-se, mas havia nele um resto de prudência. Ali podia
irritar-se, dirigir ameaças e desaforos a inimigos invisíveis. Impelido por
forças opostas, expunha-se e acautelava-se. Sabia que aquela explosão era
perigosa, temia que o soldado amarelo surgisse de repente, viesse plantar-lhe
no pé a reiúna. O soldado amarelo, falto de substância, ganhava fumaça na
companhia dos parceiros. Era bom evitá-lo. Mas a lembrança dele tornava-se às
vezes horrível. E Fabiano estava tirando uma desforra. Estimulado pela cachaça,
fortalecia-se:
–
Cadê o valente? Quem é que tem coragem de dizer que eu sou feio? Apareça um
homem.
Lançava
o desafio numa fala atrapalhada, com o vago receio de ser ouvido. Ninguém
apareceu. E Fabiano roncou alto, gritou que eram todos uns frouxos, uns
capados, sim senhor. Depois de muitos berros, supôs que havia ali perto homens
escondidos, com medo dele. Insultou-os:
–
Cambada de...
Parou
agoniado, suando frio, a boca cheia de água, sem atinar com a palavra. Cambada
de quê? Tinha o nome debaixo da língua., E a língua engrossava, perra, Fabiano
cuspia, fixava na mulher e nos filhos uns olhos vidrados. Recuou alguns passos,
entrou a engulhar. Em seguida aproximou-se – figura novamente das luzes,
capengando, foi sentar-se na calçada de uma loja. Estava desanimado, bambo; o
entusiasmo arrefecera. Cambada de que? Repetia a pergunta sem saber o que
procurava. Olhou de perto a cara da mulher, não conseguiu distinguir-lhe os
traços. Sinha Vitória perceberia a atrapalhação dele? Havia ali outros matutos
conversando, e Fabiano enjoou-os. Se não estivesse tão ansiado, arrotando,
suando, brigaria com eles. A interrogação que lhe aperreava o espírito confuso
juntou-se a idéia de que aquelas pessoas não tinham o direito de sentar-se na
calçada. Queria que. o deixassem com a mulher, os filhos e a cachorrinha.
Cambada de quê? Soltou um grito áspero, bateu palmas:
–
Cambada de cachorros.
Descoberta a expressão teimosa, alegrou-se.
Cambada de cachorros. Evidentemente os matutos como ele não passavam de
cachorros. Procurou com as mãos a mulher e os filhos, certificou-se de que eles
estavam acomodados. Uma contração violenta no pescoço entortou-lhe o rosto, a
boca encheu-se novamente de saliva. Pôs-se a cuspir. Serenou, respirou com
força, passou os dedos por um fio de baba que lhe pendia de beiço. Estava era
tonto, com uma zoada infeliz nos ouvidos. Ia jurar que mostrara valentia e
correra perigo. Achava ao mesmo tempo que havia cometido uma falta. Agora
estava pesado e com sono. Enquanto andara fazendo espalhafato, a cabeça cheia
de aguardente, desprezara as esfoladuras dos pés. Mas esfriava, e as botinas de
vaqueta magoavam-nos em demasia. Arrancou-as, tirou as meias, libertou-se do
colarinho, da gravgravata
e do paletó, enrolou tudo, fez um travesseiro, estirou-se no cimento, puxou
para os olhos o chapéu de baeta. E adormeceu, com o estômago embrulhado.
Sinha
Vitória achava-se em dificuldade: torcia-se para satisfazer uma precisão e não
sabia como se desembaraçar. Podia esconder-se no fundo do quadro, por detrás
das barracas, para lá dos tamboretes das doceiras. Ergueu-se meio decidida,
tornou a acocorar-se. Abandonar os meninos, o marido naquele estado? Apertou-se
e observou os quatro cantos com desespero, que a precisão era grande.
Escapuliu-se disfarçadamente, chegou a esquina da loja, onde havia um magote de
mulheres agachadas. E, olhando as frontarias das casas e as lanternas de papel,
molhou o chão e os pés das outras matutas. Arrastou-se para junto da família,
tirou do bolso o cachimbo de barro, atochou-o, acendeu-o, largou algumas
baforadas longas de satisfação. Livre da necessidade, viu com interesse o
formigueiro que circulava na praça, a mesa do leilão, as listas luminosas dos
foguetes. Realmente a vida não era má. Pensou com um arrepio na seca, na viagem
medonha que fizera em caminhos abrasados, vendo ossos e garranchos. Afastou a
lembrança ruim, atentou naquelas belezas. O burburinho da multidão era doce, o
realejo fanhoso dos cavalinhos não descansava. Para a vida ser boa, só faltava
à Sinha Vitória uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira. Suspirou, pensando
na cama de varas em que dormia. Ficou ali de cócoras, cachimbando, os olhos e
os ouvidos muito abertos para não perder a festa.
Os
meninos trocavam impressões cochichando, aflitos com o desaparecimento da
cachorra. Puxaram a manga da mãe. Que fim teria levado Baleia? Sinha Vitória
levantou o braço num gesto mole e indicou vagamente dois pontos cardeais com o
canudo .do cachimbo. Os pequenos insistiram. Onde estaria a cachorrinha?
Indiferentes à igreja, às lanternas de papel, aos bazares, às mesas de jogo e
aos foguetes, só se importavam com as pernas dos transeuntes. Coitadinha,
andava por aí perdida agüentando pontapés.
De
repente Baleia apareceu. Trepou-se na calçada, mergulhou entre as saias das
mulheres, passou por cima de Fabiano e chegou-se aos amigos, manifestando com a
língua e com o rabo um vivo contentamento. O menino mais velho agarrou-a.
Estava segura. Tentaram explicar-lhe que tinham tido susto enorme por causa
dela, mas Baleia não ligou importância à explicação. Achava é que perdiam tempo
num lugar esquisito, cheio de odores desconhecidos. Quis latir, expressar
oposição a tudo aquilo, mas percebeu que não convenceria ninguém e encolheu-se,
baixou a cauda, resignou-se ao capricho dos seus donos.
A
opinião dos meninos assemelhava-se à dela. Agora olhavam as lojas, as toldas, a
mesa do leilão. E conferenciavam pasmados. Tinham percebido que havia muitas
pessoas no mundo. Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos.
Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam. Impossível
imaginar tantas maravilhas juntas. O menino mais novo teve uma dúvida e
apresentou-a timidamente ao irmão. Seria que aquilo tinha sido feito por gente?
O menino mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as moças
bem vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido feito por gente.
Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito soprou-a no ouvido do irmão.
Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com
os olhos. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da
igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a
questão intrincada. Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era
impossível, ninguém conservaria tão grande soma de conhecimentos. Livres dos
nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por
gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de longe,
eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para não desencadear as forças
estranhas que elas porventura encerrassem.
Baleia
cochilava, de quando em quando balançava a cabeça e franzia o focinho. A cidade
se enchera de suores que a desconcertavam.
Sinha
Vitória enxergava, através das barracas, a cama de seu Tomás da bolandeira, uma
cama de verdade.
Fabiano
roncava de papo para cima, as abas do chapéu cobrindo-lhe os olhos, o quengo
sobre as botinas de vaqueta. Sonhava, agoniado, e Baleia percebia nele um
cheiro que o tornava irreconhecível. Fabiano se agitava, soprando. Muitos soldados
amarelos tinham aparecido, pisavam-lhe os pés com enormes reiúnas e
ameaçavam-no com facões terríveis.
Capítulo
IX – Baleia
A
cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em
vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras
supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos
beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por
isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e
amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia,
sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato,
impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a
cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda
de cascavel.
Então
Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a,
limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não
sofrer muito.
Sinha
Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que
adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:
–
Vão bulir com a Baleia?
Tinham
visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes
a suspeita de que Baleia corria perigo.
Ela
era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se
diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo,
ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.
Quiseram
mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinha Vitória levou-os para a cama de
varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos prendeu a cabeça do
mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os
pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.
Ela
também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de
Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.
Escutou,
ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da
vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.
Os
meninos começaram a gritar e a espernear. E como Sinha Vitória tinha relaxado
os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:
–
Capeta excomungado.
Na
luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade.
Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia
de ramagens.
Pouco
a pouco a cólera diminuiu, e Sinha Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da
cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência
deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa
demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse
esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.
Nesse
momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinha
Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto
era impossível, levantou os, braços e, sem largar o filho, conseguiu ocultar um
pedaço da cabeça.
Fabiano
percorreu o alpendre, olhando a baraúna e as porteiras, açulando um cão
invisível contra animais invisíveis:
–
Eco! eco!
Em
seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da
cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no
pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada,
enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore,
agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta
manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral,
deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal
estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns
passos. Ao chegar as catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A
carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se
pos a latir desesperadamente.
Ouvindo
o tiro e os latidos, Sinha Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram
na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se.
E
Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da
esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um
buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar,
mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras.
Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos
pulos.
Defronte
do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou
como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo.
Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se
aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava
de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e
quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados as feridas, era um
bicho diferente dos outros.
Caiu
antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e
estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda.
Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no
chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto as
pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.
Uma
sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as
distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder
Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo,
tornavam-se quase imperceptíveis.
Como
o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa
nesga de sombra que ladeava a pedra.
Olhou-se
de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e
aproximava-se.
Sentiu
o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha, fraco e havia
nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado
muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a
ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.
Começou
a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados
e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava:
certamente os preás tinham fugido.
Esqueceu-os
e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos
olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas
pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez
um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras
pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha
nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a
existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia
palmas.
O
objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os
dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum
tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.
Abriu
os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol
desaparecera.
Os
chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro
espalhou-se pela vizinhança.
Baleia
assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era
levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir
os meninos. Estranhou a ausência deles.
Não
se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a
esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de
responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar
as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras,
rondar. as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por
baixo do caritó onde Sinha Vitória guardava o cachimbo.
Uma
noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo,
nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem
Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas
quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares
revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha
despovoado.
Baleia
respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente
e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que
recebera no quarto e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio
desvaneciam-se no seu espírito.
Provavelmente
estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar,
Sinha Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de
vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro
descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os
cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a
cozinha.
A
tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para
trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se
arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.
Baleia
encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinha
Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.
Baleia
queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de
Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela
num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás,
gordos, enormes.
Capítulo
X – Contas
Fabiano
recebia na partilha a quarta parte dos bezerros e a terça dos cabritos. Mas
como não tinha roça e apenas se limitava a semear na vazante uns punhados de
feijão e milho, comia da feira, desfazia-se dos animais, não chegava a ferrar
um bezerro ou assinar a orelha de um cabrito.
Se
pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabeça. Forjara
planos. Tolice, quem é do chão não se trepa. Consumidos os. legumes,
roídas as espigas de milho, recorria a gaveta do amo, cedia por preço baixo o
produto das sortes, Resmungava, rezingava, numa aflição, tentando espichar os
recursos minguados, engasgava-se, engolia em seco. Transigindo com outro, não
seria roubado tão descaradamente. Mas receava ser expulso da fazenda. E
rendia-se: Aceitava o cobre e ouvia conselhos. Era bom pensar no futuro, criar
juízo. Ficava de boca aberta, vermelho, o pescoço inchando. De repente
estourava
–
Conversa. Dinheiro anda num cavalo e ninguém pode viver sem comer. Quem é
do chão não se trepa.
Pouco
a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos de Fabiano. E quando não
tinha mais nada para vender, o sertanejo endividava-se. Ao chegar a partilha,
estava encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia.
Ora,
daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado, arrependeu-se, enfim
deixou a transação meio apalavrada e foi consultar a mulher. Sinha Vitória
mandou os meninos para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se,
distribuiu no chão sementes de várias espécies, realizou somas e diminuições.
No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as
operações de Sinha Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou e
obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros.
Não
se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se
perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um
erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos.
Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada!
Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria!
O
patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar
serviço noutra fazenda.
Aí
Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era preciso barulho não. Se
havia dito palavra à-toa, pedia desculpa. Era bruto, não fora ensinado.
Atrevimento não tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão com
gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os homens. Devia ser
ignorância da mulher, provavelmente devia ser ignorância da mulher. Até
estranhara as contas dela. Enfim, como não sabia ler (um bruto, sim senhor),
acreditara na sua velha. Mas pedia desculpa e jurava não cair noutra.
O
amo abrandou, e Fabiano saiu de costas, o chapéu varrendo o tijolo. Na porta,
virando-se, enganchou as rosetas das esporas, afastou-se tropeçando, os
sapatões de couro cru batendo no chão como cascos.
Foi
até a esquina, parou, tomou fôlego. Não deviam tratá-lo assim. Dirigiu-se ao
quadro lentamente. Diante da bodega de seu Inácio virou o rosto e fez uma curva
larga. Depois que acontecera aquela miséria, temia passar ali. Sentou-se numa
calçada, tirou do bolso o dinheiro, examinou-o, procurando adivinhar quanto lhe
tinham furtado. Não podia dizer em voz alta que aquilo era um furto, mas era.
Tomavam-lhe o gado quase de graça e ainda inventavam juro. Que juro! O que
havia era safadeza.
–
Ladroeira.
Nem
lhe permitiam queixas. Porque reclamara, achara a coisa uma exorbitância, o
branco se levantara furioso, com quatro pedras na mão. Para que tanto
espalhafato?
–
Hum! hum!
Recordou-se
do que lhe sucedera anos atrás, antes da seca, longe. Num dia de apuro
recorrera ao porco magro que não queria engordar no chiqueiro e estava
reservado às despesas do Natal: matara-o antes de tempo e fora vendê-lo na
cidade. Mas o cobrador da prefeitura chegara com o recibo e atrapalhara-o.
Fabiano fingira-se desentendido : não compreendia nada, era bruto. Como o outro
lhe explicasse que, para vender o porco, devia pagar imposto, tentara
convencê-lo de que ali não havia porco, havia quartos de porco, pedaços de
carne. O agente se aborrecera, insultara-o, e Fabiano se encolhera. Bem, bem.
Deus o livrasse de história com o governo. Julgava que podia dispor dos seus
troços. Não entendia de imposto.
–
Um bruto, está percebendo?
Supunha
que o cevado era dele. Agora se a prefeitura tinha uma parte, estava acabado.
Pois ia voltar para casa e comer a carne. Podia comer a carne? Podia ou não
podia? O funcionário batera o pé agastado e Fabiano se desculpara, o chapéu de
couro na mão, o espinhaço curvo:
–
Quem foi que disse que eu queria brigar? O melhor é a gente acabar com isso.
Despedira-se,
metera a carne no saco e fora vendê-la noutra rua, escondido. Mas, atracado
pelo cobrador, gemera no imposto e na multa. Daquele dia em diante não criara
mais porcos. Era perigoso criá-los.
Olhou
as cédulas arrumadas na palma, os níqueis e as pratas, suspirou, mordeu os
beiços. Nem lhe restava o direito de protestar. Baixava a crista. Se não
baixasse, desocuparia a terra, largar-se-ia com a mulher, os filhos pequenos e
os cacarecos. Para onde? Hem? Tinha para onde levar a mulher e os meninos?
Tinha nada!
Espalhou
a vista pelos quatro cantos. Além dos telhados, que lhe reduziam o horizonte, a
campina se estendia, seca e dura. Lembrou-se da marcha penosa que fizera
através dela, com a família, todos esmolambados e famintos. Haviam escapado, e
isto lhe parecia um milagre. Nem sabia como tinham escapado.
Se
pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam. Aparentemente resignado,
sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o
patrão, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele.
Estava acostumado, tinha a casca muito grossa, mas às vezes se arreliava. Não
havia paciência que suportasse tanta coisa.
–
Um dia um homem faz besteira e se desgraça.
Pois
não estavam vendo que ele era de carne e osso? Tinha obrigação de trabalhar
para os outros, naturalmente, conhecia o seu lugar. Bem. Nascera com esse
destino, ninguém tinha culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Que
fazer? Podia mudar a sorte? Se lhe dissessem que era possível melhorar de
situação, espantar-se-ia. Tinha vindo ao mundo para amansar brabo, curar
feridas com rezas, consertar cercas de inverno a verão. Era sina. O pai vivera
assim, o avô também. E para trás não existia família. Cortar mandacaru, ensebar látegos – aquilo estava no
sangue. Conformava-se, não pretendia mais nada Se lhe dessem o que era dele,
estava certo. Não davam. Era um desgraçado, era como um cachorro,.só recebia
ossos. Por que seria que os homens ricos ainda lhe tomavam uma parte dos ossos?
Fazia até nojo pessoas importantes se ocuparem com semelhantes porcarias.
Na
palma da mão as notas estavam úmidas de suor. Desejava saber o tamanho da
extorsão. Da última vez que fizera contas com o amo o prejuízo parecia menor.
Alarmou-se. Ouvira falar em juros e em prazos. Isto lhe dera uma impressão
bastante penosa: sempre que os homens sabidos lhe diziam palavras difíceis, ele
saía logrado. Sobressaltava-se escutando-as. Evidentemente só serviam para
encobrir ladroeiras. Mas eram bonitas. As vezes decorava algumas e empregava-as
fora do propósito. Depois esquecia-as. Para que um pobre da laia dele usar
conversa de gente rica? Sinha Terta é que tinha uma ponta de língua terrível.
Era: falava quase tão bem como as pessoas da cidade. Se ele soubesse falar como
Sinha Terta, procuraria serviço noutra fazenda, haveria de arranjar-se. Não
sabia. Nas horas de aperto dava para gaguejar, embaraçava-se como um menino,
coçava os cotovelos, aperreado. Por isso esfolavam-no. Safados. Tomar as coisas
de um infeliz que não tinha onde cair morto! Não viam que isso não estava
certo? Que iam ganhar com semelhante procedimento? Hem? Que iam ganhar?
–
An!
Agora
não criava porco e queria ver o tipo da prefeitura cobrar dele imposto e multa.
Arrancavam-lhe a camisa do corpo e ainda por cima davam-lhe facão e cadeia.
Pois não trabalharia mais, ia descansar.
Talvez
não fosse. Interrompeu o monólogo, levou uma eternidade contando e recontando
mentalmente o dinheiro. Amarrotou-o com força, empurrou-o no bolso raso da
calça, meteu na casa estreita o botão de osso. Porcaria.
Levantou-se,
foi até a porta de uma bodega, com vontade de beber cachaça. Como havia muitas
pessoas encostadas ao balcão, recuou. Não gostava de se ver no meio do
povo. Falta de costume. As vezes dizia uma coisa sem intenção de ofender,
entendiam outra, e lá vinham questões. Perigoso entrar na bodega. O único
vivente que o compreendia era a mulher. Nem precisava falar : bastavam os
gestos. Sinha Terta é que se explicava como gente da rua. Muito bom uma
criatura ser assim, ter recurso para se defender. Ele não tinha. Se
tivesse, não viveria naquele estado.
Um
perigo entrar na bodega. Estava com desejo de beber um quarteirão de cachaça,
mas lembrava-se da última visita feita à venda de seu Inácio. Se não tivesse
tido a idéia de beber, não lhe haveria sucedido aquele desastre. Nem podia
tomar uma pinga descansado. Bem. Ia voltar para casa e dormir.
Saiu
lento, pesado, capiongo, as rosetas das esporas silenciosas. Não conseguiria
dormir. Na cama de varas havia um pau com um nó, bem no meio. Só muito cansaço
fazia um cristão acomodar-se em semelhante dureza. Precisava fatigar-se no
lombo de um cavalo ou passar o dia consertando cercas. Derreado, bambo,,
espichava-se e roncava como um porco. Agora não lhe seria possível fechar os
olhos. Rolaria a noite inteira sobre as varas, matutando naquela perseguição.
Desejaria imaginar o que ia fazer para o futuro. Não ia fazer nada. Matar-se-ia
no serviço e moraria numa casa alheia, enquanto o deixassem ficar. Depois
sairia pelo mundo, iria morrer de fome na catinga seca.
Tirou
do bolso o rolo de fumo, preparou um cigarro com a faca de ponta. Se ao menos
pudesse recordar-se de fatos agradáveis, a vida não seria inteiramente má.
Deixara
a rua. Levantou a cabeça, viu uma estrela, depois muitas estrelas. As figuras
dos inimigos esmoreceram. Pensou na mulher, nos filhos e na cachorra morta.
Pobre de Baleia. Era como se ele tivesse matado uma pessoa da família.
Capítulo
XI – O Soldado Amarelo
Fabiano
meteu-se na vereda que ia desembocar na lagoa seca, torrada, coberta de catingueiras
e capões de mato. Ia pesado, o alo cheio a tiracolo, muitos látegos e chocalhos
pendurados num braço. O facão batia nos tocos.
Espiava
o chão como de costume, decifrando rastos. Conheceu os da égua ruça e da cria,
marcas de cascos grandes e pequenos. A égua ruça, com certeza. Deixara pêlos
brancos num tronco de angico. Urinara na areia e o mijo desmanchara as pegadas,
o que não aconteceria se se tratasse de um cavalo.
Fabiano
ia desprecatado, observando esses sinais e outros que se cruzavam, de viventes
menores. Corcunda, parecia farejar o solo e a catinga deserta animava-se, os
bichos que ali tinham passado voltavam, apareciam-lhe diante dos olhos miúdos.
Seguiu
a direção que a égua havia tomado. Andara cerca de cem braças quando o cabresto
de cabelo que trazia no ombro se enganchou num pé de quipá. Desembaraçou o
cabresto, puxou o facão, pôs-se a cortar as quipás e as palmatórias que
interrompiam a passagem.
Tinha
feito um estrago feio, a terra se cobria de palmas espinhosas. Deteve-se
percebendo rumor de garranchos, voltou-se e deu de cara com o soldado amarelo
que, um ano antes, o levara a cadeia, onde ele agüentara uma surra e passara a
noite. Baixou a arma. Aquilo durou um segundo. Menos: durou uma fração de
segundo. Se houvesse durado mais tempo, o amarelo teria caído esperneando na
poeira, com o quengo rachado. Como o impulso que moveu o braço de Fabiano foi
muito forte, o gesto que ele fez teria sido bastante para um homicídio se outro
impulso não lhe dirigisse o braço em sentido contrário. A lâmina parou de
chofre, junto à cabeça do intruso, bem em cima do boné vermelho. A princípio o
vaqueiro não compreendeu nada. Viu apenas que estava ali um inimigo. De repente
notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade. Sentiu um choque
violento, deteve-se, o braço ficou irresoluto, bambo, inclinando-se para um
lado e para outro.
O
soldado, magrinho, enfezadinho, tremia. E Fabiano tinha vontade de levantar o
facão de novo. Tinha vontade, mas os músculos afrouxavam. Realmente não quisera
matar um cristão: procedera como quando, a montar brabo, evitava galhos e
espinhos. Ignorava os movimentos que fazia na sela. Alguma coisa o empurrava
para a direita ou para a esquerda. Era essa coisa que ia partindo a cabeça do
amarelo. Se ela tivesse demorado um minuto, Fabiano seria um cabra valente. Não
demorara. A certeza do perigo surgira e ele estava indeciso, de olho
arregalado, respirando com dificuldade, um espanto verdadeiro no rosto barbudo
coberto de suor, o cabo do facão mal seguro entre os dois dedos úmidos.
Tinha
medo e repetia que estava em perigo, mas isto lhe pareceu tão absurdo que se
pôs a rir. Medo daquilo? Nunca vira uma pessoa tremer assim. Cachorro. Ele não
era dunga na cidade? Não pisava os pés dos matutos, na feira? Não botava gente
na cadeia? Sem-vergonha, mofino.
Irritou-se.
Porque seria que aquele safado batia os dentes como um caititu? Não via que ele
era incapaz de vingar-se? Não via? Fechou a cara. A idéia do perigo ia-se
sumindo. Que perigo? Contra aquilo nem precisava facão, bastavam as unhas.
Agitando os chocalhos e os látegos, chegou a mão esquerda, grossa e cabeluda, à
cara do polícia, que recuou e se encostou a uma catingueira. Se não fosse a
catingueira, o infeliz teria caído.
Fabiano
pregou nele os olhos ensangüentados, meteu o facão na bainha. Podia matá-lo com
as unhas. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim
senhor. Aquilo ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas. Estava
certo? O rosto de Fabiano contraía-se, medonho, mais feio que um focinho. Hem?
Estava certo? Bulir com as pessoas que não fazem mal a ninguém. Porque?
Sufocava-se, as rugas da testa aprofundavam-se, os pequenos olhos azuis
abriam-se demais, numa interrogação dolorosa.
O
soldado encolhia-se, escondia-se por detrás da árvore. E Fabiano cravava as
unhas nas palmas calosas. Desejava ficar cego outra vez. Impossível readquirir
aquele instante de inconsciência. Repetia que a arma era desnecessária, mas
tinha a certeza de que não conseguiria utilizá-la – e apenas queria enganar-se.
Durante um minuto a cólera que sentia por se considerar impotente foi tão
grande que recuperou a força e avançou para o inimigo.
A
raiva cessou, os dedos que feriam a palma descerraram-se – e Fabiano estacou
desajeitado, como um pato, o corpo amolecido.
Grudando-se
à catingueira, o soldado apresentava apenas um braço, uma perna e um pedaço da
cara, mas esta banda de homem começava a crescer aos olhos do vaqueiro. E a
outra parte, a que estava escondida, devia ser maior. Fabiano tentou afastar a
idéia absurda:
–
Como a gente pensa coisas bestas!
Alguns
minutos antes não pensava em nada, mas agora suava frio e tinha lembranças insuportáveis.
Era um sujeito violento, de coração perto da goela. Não, era um cabra que se
arreliava algumas vezes – e quando isto acontecia, sempre se dava mal. Naquela
tarde, por exemplo, se não tivesse perdido a paciência e xingado a mãe da
autoridade, não teria dormido na cadeia depois de agüentar zinco no lombo. Dois
excomungados tinham-lhe caído em cima, um ferro batera-lhe no peito, outro nas
costas, ele se arrastara tiritando como um frango molhado. Tudo porque se
esquentara e dissera uma palavra inconsideradamente. Falta de criação. Tinha lá
culpa? O sarapatel se formara, o cabo abrira caminho entre os feirantes que se
apertavam em redor: – "Toca pra frente".
Depois
surra e cadeia, por causa de uma tolice. Ele, Fabiano, tinha sido provocado.
Tinha ou não tinha? Salto de reiúna em cima da alpercata. Impacientara-se e
largara o palavrão. Natural, xingar a mãe de uma pessoa não vale nada, porque
todo o mundo vê logo que a gente não tem a intenção de maltratar ninguém. Um
ditério sem importância. O amarelo devia saber isso. Não sabia. Saíra-se com
quatro pedras na mão, apitara. E Fabiano comera da banda podre. –
"Desafasta".
Deu
um passo para a catingueira. Se ele gritasse agora "Desafasta", que
faria o polícia? Não se afastaria, ficaria colado ao pé de pau. Uma lazeira, a
gente podia xingar a mãe dele. Mas então... Fabiano estirava o beiço e rosnava.
Aquela coisa arriada e achacada metia as pessoas na cadeia, dava-lhes surra.
Não entendia. Se fosse uma criatura de saúde e muque, estava certo. Enfim apanhar
do governo não é desfeita, e Fabiano até sentiria orgulho ao recordar-se da
aventura. Mas aquilo... Soltou uns grunhidos. Porque motivo o governo
aproveitava gente assim? Só se ele tinha receio de empregar tipos direitos.
Aquela cambada só servia para morder as pessoas inofensivas. Ele, Fabiano,
seria tão ruim se andasse fardado? Iria pisar os pés dos trabalhadores e dar
pancada neles? Não iria.
Aproximou-se
lento, fez uma volta, achou-se em frente do polícia, que embasbacou, apoiado ao
tronco, a pistola e o punhal inúteis. Esperou que ele se mexesse. Era uma
lazeira, certamente, mas vestia farda e não ia ficar assim, os olhos
arregalados, os beiços brancos, os dentes chocalhando como bilros. Ia bater o
pé, gritar, levantar a espinha, plantar-lhe o salto da reiúna em cima da
alpercata. Desejava que ele fizesse isso. A idéia de ter sido insultado, preso,
moído por uma criatura mofina era insuportável. Mirava-se naquela covardia,
via-se mais lastimoso e miserável que o outro.
Baixou
a cabeça, coçou os pêlos ruivos do queixo. Se o soldado não puxasse o facão,
não gritasse, ele Fabiano, seria um vivente muito desgraçado.
Devia
sujeitar-se àquela tremura, àquela amarelidão? Era um bicho resistente,
calejado. Tinha nervo, queria brigar, metera-se em espalhafatos e saíra de
crista levantada. Recordou-se de lutas antigas, em danças com fêmea e cachaça.
Uma vez, de lambedeira em punho, espalhara a negrada. Aí Sinha Vitória começara
a gostar dele. Sempre fora reimoso. Iria esfriando com a idade? Quantos anos
teria? Ignorava, mas certamente envelhecia e fraquejava. Se possuísse espelhos,
veria rugas e cabelos brancos. Arruinado, um caco. Não sentira a transformação,
mas estava-se acabando.
O
suor umedeceu-lhe as mãos duras. Então? Suando com medo de uma peste que se
escondia tremendo? Não era uma infelicidade grande, a maior das infelicidades?
Provavelmente não se esquentaria nunca mais, passaria o resto da vida assim
mole e ronceiro. Como a gente muda! Era. Estava mudado. Outro indivíduo, muito
diferente do Fabiano que levantava poeira nas salas de dança. Um Fabiano bom
para agüentar facão no lombo e dormir na cadeira.
Virou
a cara, enxergou o facão de rasto. Aquilo nem era facão, não servia para nada.
Ora
não servia!
–
Quem disse que não servia?
Era
um facão verdadeiro, sim senhor, movera-se como um raio cortando palmas de
quipá. E estivera a pique de rachar o quengo de um sem-vergonha. Agora dormia
na bainha rota, era um troço inútil, mas tinha sido uma arma. Se aquela coisa
tivesse durado mais um segundo, o polícia estaria morto. Imaginou-o assim,
caído, as pernas abertas, os bugalhos apavorados, um fio de sangue
empastando-lhe os cabelos, formando um riacho entre os seixos da vereda. Muito
bem! Ia arrastá-lo para dentro da catinga, entregá-lo aos urubus. E não sentiria
remorso. Dormiria com a mulher, sossegado, na cama de varas. Depois gritaria
aos meninos, que precisavam criação. Era um homem, evidentemente.
Aprumou-se,
fixou os olhos nos olhos do polícia, que se desviaram. Um homem. Besteira
pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas
para que suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para baixo?
Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feira e
insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia a pena inutilizar-se.
Guardava a sua força.
Vacilou
e coçou a testa. Havia muitos bichinhos assim ruins, havia um horror de
bichinhos assim fracos e ruins.
Afastou-se,
inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou,
pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro.
–
Governo é governo.
Tirou
o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo.
Capítulo
XII – O Mundo Coberto de Penas
O
mulungu do bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal, provavelmente o sertão
ia pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-se nas árvores da beira do rio,
descansavam, bebiam e, como em redor não havia comida, seguiam viagem para o
sul. O casal agoniado sonhava desgraças. O sol chupava os poços, e aquelas
excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado.
Sinha
Vitória falou assim, mas Fabiano resmungou, franziu a testa, achando a frase
extravagante. Aves matarem bois e cabras, que lembrança! Olhou a mulher,
desconfiado, julgou que ela estivesse tresvariando. Foi sentar-se no banco do
copiar, examinou o céu limpo, cheio de claridades de mau agouro, que a sombra
das arribações cortava. Um bicho de penas matar o gado! Provavelmente Sinha
Vitória não estava regulando.
Fabiano
estirou o beiço e enrugou mais a testa suada: impossível compreender a intenção
da mulher. Não atinava. Um bicho tão pequeno! Achou a coisa obscura e desistiu
de aprofundá-la. Entrou em casa, trouxe o aió, preparou um cigarro, bateu com o
fuzil na pedra, chupou uma tragada longa. Espiou os quatro cantos, ficou alguns
minutos voltado para o norte, coçando o queixo.
–
Chi! Que fim de mundo!
Não
permaneceria ali muito tempo. No silêncio comprido só se ouvia um rumor de
asas.
Como
era que Sinha Vitória tinha dito? A frase dela tornou ao espírito de Fabiano e
logo a significação apareceu. As arribações bebiam a água. Bem. O gado curtia
sede e morria. Muito bem. As arribações matavam o gado. Estava certo.
Matutando, a gente via que era assim, mas Sinha Vitória largava tiradas
embaraçosas. Agora Fabiano percebia o que ela queria dizer. Esqueceu a
infelicidade próxima, riu-se encantado com a esperteza de Sinha Vitória. Uma
pessoa como aquela valia ouro. Tinha idéias, sim senhor, tinha muita coisa no
miolo. Nas situações difíceis encontrava saída. Então! Descobrir que as
arribações matavam o gado! E matavam. Aquela hora o mulungu do bebedouro, sem
folhas e sem flores, uma barrancharia pelada, enfeitava-se de penas.
Desejou
ver aquilo de perto, levantou-se, botou o aió a tiracolo, foi buscar o chapéu
de couro e a espingarda de pederneira. Desceu o copiar, atravessou o pátio,
avizinhou-se da ladeira pensando na cachorra Baleia. Coitadinha. Tinham-lhe
aparecido aquelas coisas horríveis na boca, o pêlo caíra, e ele precisara
matá-la. Teria procedido bem? Nunca havia refletido nisso. A cachorra estava
doente. Podia consentir que ela mordesse os meninos? Podia consentir? Loucura
expor as crianças à hidrofobia. Pobre da Baleia. Sacudiu a cabeça para
afastá-la do espírito. Era o diabo daquela espingarda que lhe trazia a imagem
da cadelinha. A espingarda, sem dúvida. Virou o rosto defronte das pedras do
fim do pátio, onde Baleia aparecera fria, inteiriçada, com os olhos comidos
pelos urubus.
Alargou
o passo, desceu a ladeira, pisou a terra de aluvião, aproximou-se do bebedouro.
Havia um bater doido de asas por cima da poça de água preta, a garrancheira do
mulungu estava completamente invisível. Pestes. Quando elas desciam do sertão,
acabava-se tudo. O gado ia finar-se, até os espinhos secariam.
Suspirou.
Que havia de fazer? Fugir de novo, aboletar-se noutro lugar, recomeçar a vida.
Levantou a espingarda, puxou o gatilho sem pontaria. Cinco ou seis aves caíram
no chão, o resto se espantou, os galhos queimados surgiram nus. Mas pouco a
pouco se foram cobrindo, aquilo não tinha fim.
Fabiano
sentou-se desanimado na ribanceira do bebedouro, carregou lentamente a
espingarda com chumbo miúdo e não socou a bucha, para a carga espalhar-se e
alcançar muitos inimigos. Novo tiro, novas quedas, mas isto não deu nenhum
prazer a Fabiano. Tinha ali comida para dois ou três dias; se possuísse
munição, teria comida para semanas e meses.
Examinou
o polvarinho e o chumbeira, pensou na viagem, estremeceu. Tentou iludir-se,
imaginou que ela não se realizaria se ele não a provocasse com idéias ruins.
Reacendeu o cigarro, procurou distrair-se falando baixo. Sinha Terta era pessoa
de muito saber naquelas beiradas. Como andariam as contas com o patrão? Estava
ali o que ele não conseguiria nunca decifrar. Aquele negócio de juros engolia
tudo, e afinal o branco ainda achava que fazia favor. O soldado amarelo...
Fabiano,
encaiporado, fechou as mãos e deu murros na coxa. Diabo. Esforçava-se por
esquecer uma infelicidade, e vinham outras infelicidades. Não queria lembrar-se
do patrão nem do soldado amarelo. Mas lembrava-se, com desespero, enroscando-se
como uma cascavel assanhada. Era um infeliz, era a criatura mais infeliz do
mundo. Devia ter ferido naquela tarde o soldado amarelo, devia tê-lo cortado a
facão. Cabra ordinário, mofino, encolhera-se e ensinara o caminho. Esfregou a
testa suada e enrugada. Para que recordar vergonha? Pobre dele. Estava então
decidido que viveria sempre assim? Cabra safado, mole. Se não fosse tão fraco,
teria entrado no cangaço e feito misérias. Depois levaria um tiro de emboscada
ou envelheceria na cadeia, cumprindo sentença, mas isto não era melhor que
acabar-se numa beira de caminho, assando no calor, a mulher e os filhos
acabando-se também. Devia ter furado o pescoço do amarelo com faca de
ponta, devagar. Talvez estivesse preso e respeitado, um homem respeitado, um
homem. Assim como estava, ninguém podia respeitá-lo. Não era homem, não era
nada. Agüentava zinco no lombo e não se vingava.
–
Fabiano, meu filho, tem coragem. Tem vergonha, Fabiano. Mata o soldado amarelo.
Os soldados amarelos são uns desgraçados que precisam morrer. Mata o soldado
amarelo e os que mandam nele.
Como
gesticulava com furor, gastando muita energia, pôs-se a resfolegar e sentiu
sede. Pela cara vermelha e queimada o suor corria, tornava mais escura a barba
ruiva. Desceu da ribanceira, agachou-se à beira da água salobra, pôs-se a beber
ruidosamente nas palmas das mãos. Uma nuvem de arribações voou assustada.
Fabiano levantou-se, um brilho de indignação nos olhos.
–
Miseráveis.
A
cólera dele se voltava de novo contra as aves. Tornou a sentar-se na
ribanceira, atirou muitas vezes nos ramos do mulungu, o chão ficou todo coberto
de cadáveres. Iam ser salgados, estendidos em cordas. Tencionou aproveitá-los
como alimento na viagem próxima. Devia gastar o resto do dinheiro em chumbo e
pólvora, passar um dia no bebedouro, depois largar-se pelo mundo. Seria
necessário mudar-se? Apesar de saber perfeitamente que era necessário,
agarrou-se a esperanças frágeis. Talvez a seca não viesse, talvez chovesse. Aqueles
malditos bichos é que lhe faziam medo. Procurou esquecê-los. Mas como poderia
esquecê-los se estavam ali, voando-lhe em torno da cabeça, agitando-se na lama,
empoleirados nos galhos, espalhados no chão, mortos? Se não fossem eles, a seca
não existiria. Pelo menos não existiria naquele momento: viria depois, seria
mais curta. Assim, começava logo – e Fabiano sentia-a de longe. Sentia-a como
se ela já tivesse chegado, experimentava adiantadamente a fome, a sede, as
fadigas imensas das retiradas. Alguns dias antes estava sossegado, preparando
látegos, consertando cercas. De repente, um risco no céu, outros riscos,
milhares de riscos juntos, nuvens, o medonho rumor de asas a anunciar
destruição. Ele já andava meio desconfiado vendo as fontes minguarem. E olhava
com desgosto a brancura das manhãs longas e a vermelhidão sinistra das tardes.
Agora confirmavam-se as suspeitas.
–
Miseráveis.
As
bichas excomungadas eram a causa da seca. Se pudesse matá-las, a seca se
extinguiria. Mexeu-se com violência, carregou a espingarda furiosamente. A mão
grossa, cabeluda, cheia de manchas e descascada, tremia sacudindo a vareta.
–
Pestes.
Impossível
dar cabo daquela praga. Estirou os olhos pela campina, achou-se isolado.
Sozinho num mundo coberto de penas, de aves que iam comê-lo. Pensou na mulher e
suspirou. Coitada de Sinha Vitória, novamente nos descampados, transportando o
baú de folha. Uma pessoa de tanto juízo marchar na terra queimada, esfolar os
pés nos seixos, era duro. As arribações matavam o gado. Como tinha Sinha Vitória
descoberto aquilo. Difícil. Ele, Fabiano, espremendo os miolos. Não diria
semelhante frase. Sinha Vitória fazia contas direito: sentava-se na cozinha,
consultava montes de sementes de várias espécies, correspondentes a mil-réis,
tostões e vinténs. E acertava. As contas do patrão eram diferentes, arranjadas
a tinta e contra o vaqueiro, mas Fabiano sabia que elas estavam erradas e o
patrão queria enganá-lo. Enganava. Que remédio? Fabiano, um desgraçado, um
cabra, dormia na cadeia e agüentava zinco no lombo. Podia reagir? Não podia. Um
cabra. Mas as contas de Sinha Vitória deviam ser exatas. Pobre de Sinha
Vitória. Não conseguiria nunca estender os ossos numa cama, o único desejo que
tinha. Os outros não se deitavam em camas? Receando magoá-la, Fabiano concordava
com ela, embora aquilo fosse um sonho. Não poderiam dormir como gente. E agora
iam ser comidos pelas arribações.
Desceu
da ribanceira, apanhou lentamente os cadáveres, meteu-os no aió, que ficou
cheio, empanzinado. Retirou-se devagar. Ele, Sinha Vitória e os dois meninos
comeriam as arribações.
Se a cachorra Baleia estivesse viva, iria
regalar-se. Porque seria que o coração dele se apertava? Coitadinha da cadela.
Matara-a forçado, por causa da moléstia. Depois voltara aos látegos, às cercas,
às contas embaraçadas do patrão. Subiu a ladeira, avizinhou-se dos juazeiros.
Junto a raiz de um deles a pobrezinha gostava de espojar-se, cobrir-se de
garranchos e folhas secas. Fabiano suspirou, sentiu um peso enorme por dentro.
Se tivesse cometido um erro? Olhou a planície animal
tivera hidrofobia, ameaçara as crianças. Matara-o por isso.
Aqui
as idéias de Fabiano atrapalharam-se: a cachorra misturou-se com as arribações,
que não se distinguiam da seca. Ele, a mulher e os dois meninos seriam comidos.
Sinha Vitória tinha razão : era atilada e percebia as coisas de longe. Fabiano
arregalava os olhos e desejava continuar a admirá-la. Mas o coração grosso,
como um cururu, enchia-se com a lembrança da cadela. Coitadinha, magra, dura,
inteiriçada, os olhos arrancados pelos urubus.
Diante
dos juazeiros, Fabiano apressou-se, Sabia lá se a alma de Baleia andava por
ali, fazendo visagem?
Chegou-se
a casa, com medo. Ia escurecendo, e àquela hora ele sentia sempre uns vagos
terrores. Ultimamente vivia esmorecido, mofino, porque as desgraças eram
muitas. Precisava consultar sinha Vitória, combinar a viagem, livrar-se das
arribações, explicar-se, convencer-se de que não praticara injustiça matando a
cachorra. Necessário abandonar aqueles lugares amaldiçoados. Sinha Vitória
pensaria como ele.
Capítulo
XIII – Fuga
A
vida na fazenda se tornara difícil. Sinha Vitória benzia-se tremendo, manejava
o rosário, mexia os beiços rezando rezas desesperadas. Encolhido no banco do
copiar, Fabiano espiava a catinga amarela, onde as folhas secas se
pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros,
torrados. No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco
os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a
Deus um milagre.
Mas
quando a fazenda se despovoou, viu que tudo estava perdido, combinou a viagem
com a mulher, matou o bezerro morrinhento que possuíam, salgou a carne,
largou-se com a família, sem se despedir do amo. Não poderia nunca liquidar
aquela dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se ao mundo, como negro fugido.
Saíram
de madrugada. Sinha Vitória meteu o braço pelo buraco da parede e fechou a porta
da frente com a taramela. Atravessaram o pátio, deixaram na escuridão o
chiqueiro e o curral, vazios, de porteiras abertas, o carro de bois que
apodrecia, os juazeiros. Ao passar junto às pedras onde os meninos atiravam
cobras mortas, Sinha Vitória lembrou-se da cachorra Baleia, chorou, mas estava
invisível e ninguém percebeu o choro.
Desceram
a ladeira, atravessaram o rio seco, tomaram rumo para o sul. Com a fresca da
madrugada, andaram bastante, em silêncio, quatro sombras no caminho estreito
coberto de seixos miúdos – os meninos à frente, conduzindo trouxas de roupa,
Sinha Vitória sob o baú de folha pintada e a cabaça de água, Fabiano atrás, de
facão de rasto e faca de ponta, a cuia pendurada por uma correia amarrada ao
cinturão, o aió a tiracolo, a espingarda de pederneira num ombro, o saco da
matalotagem no outro. Caminharam bem três léguas antes que a barra do nascente
aparecesse
Fizeram
alto. E Fabiano depôs no chão parte da carga, olhou o céu, as mãos em pala na
testa. Arrastara-se até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente mudança.
Retardara-se e repreendera os meninos, que se adiantavam, aconselhara-os -a
poupar forças. A verdade é que não queria afastar-se da fazenda. A viagem
parecia-lhe sem jeito, nem acreditava nela. Preparara-a lentamente, adiara-a,
tornara a prepará-la, e só se resolvera a partir quando estava definitivamente
perdido. Podia continuar a viver num cemitério? Nada o prendia àquela terra
dura, acharia um lugar menos seco para enterrar-se. Era o que Fabiano dizia,
pensando em coisas alheias:" o chiqueiro e o curral, que precisavam
conserto, o cavalo de fábrica, bom companheiro, a égua alazã, as catingueiras,
as panelas de losna, as pedras da cozinha, a cama de varas. E os pés dele
esmoreciam, as alpercatas calavam-se na escuridão. Seria necessário largar
tudo? As alpercatas chiavam de novo no caminho coberto de seixos.
Agora
Fabiano examinava o céu, a barra que tingia o nascente, e não queria
convencer-se da realidade. Procurou distinguir qualquer coisa diferente da
vermelhidão que todos os dias espiava, com o coração aos baques. As mãos
grossas, por baixo da aba curva do chapéu, protegiam-lhe os olhos contra a
claridade e tremiam.
Os
braços penderam, desanimados.
–
Acabou-se.
Antes
de olhar o céu, já sabia que ele estava negro num lado, cor de sangue no outro,
e ia tornar-se profundamente azul. Estremeceu como se descobrisse uma coisa
muito ruim.
Desde
o aparecimento das arribações vivia desassossegado. Trabalhava demais para não
perder o sono. Mas no meio do serviço um arrepio corria-lhe no espinhaço, à
noite acordava agoniado e encolhia-se num canto da cama de varas, mordido pelas
pulgas, conjecturando misérias.
A
luz aumentou e espalhou-se na campina. Só aí principiou a viagem. Fabiano
atentou na mulher e nos filhos, apanhou a espingarda e o saco dos mantimentos,
ordenou a marcha com uma interjeição áspera.
Afastaram-se
rápidos; como se alguém os tangesse, e as alpercatas de Fabiano iam quase
tocando os calcanhares dos meninos. A lembrança da cachorra Baleia picava-o,
intolerável. Não podia livrar-se dela. Os mandacarus e os alastrados vestiam a
campina,, espinho, só espinho. E Baleia aperreava-o. Precisava fugir daquela
vegetação inimiga.
Os
meninos corriam. Sinha Vitória procurou com a vista o rosário de contas brancas
e azuis arrumado entre os peitos, mas, com o movimento que fez, o baú de folha
pintada ia caindo. Aprumou-se e endireitou o baú, remexeu os beiços numa
oração. Deus Nosso Senhor protegeria os inocentes. Sinha Vitória fraquejou, uma
ternura imensa encheu-lhe o coração. Reanimou-se, tentou libertar-se dos
pensamentos tristes e conversar com o marido por monossílabos. Apesar de ter
boa ponta de língua, sentia um aperto na garganta e não poderia explicar-se.
Mas achava-se desamparada e miúda na solidão, necessitava um apoio, alguém que
lhe desse coragem. Indispensável ouvir qualquer som. A manhã, sem pássaros, sem
folhas e sem vento, progredia num silêncio de morte. A faixa vermelha
desaparecera, diluíra-se no azul que enchia o céu. Sinha Vitória precisava
falar. Se ficasse calada, seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo.
Queria enganar-se, gritar, dizer que era forte, e a quentura medonha, as
árvores transformadas em garranchos, a imobilidade e o silêncio não valiam
nada. Chegou-se a Fabiano, amparou-o e amparou-se, esqueceu os objetos
próximos, os espinhos, as arribações, os urubus que farejavam carniça. Falou no
passado, confundiu-o com o futuro. Não poderiam voltar a ser o que já tinham
sido?
Fabiano
hesitou, resmungou, como fazia sempre que lhe dirigiam palavras
incompreensíveis. Mas achou bom que Sinha Vitória tivesse puxado conversa. Ia
num desespero, o saco da comida e o aió começavam a pesar excessivamente. Sinha
Vitória fez a pergunta, Fabiano matutou e andou bem meia légua sem sentir. A
princípio quis responder que evidentemente eles eram o que tinham sido; depois
achou que estavam mudados, mais velhos e mais fracos. Eram outros, para bem
dizer. Sinha Vitória insistiu. Não seria bom tornarem a viver como tinham
vivido, muito longe? Fabiano agitava a cabeça, vacilando. Talvez fosse, talvez
não fosse. Cochicharam uma conversa longa e entrecortada, cheia de
mal-entendidos e repetições. Viver como tinham vivido, numa caSinha protegida
pela bolandeira de seu Tomás. Discutiram e acabaram reconhecendo que aquilo não
valeria a pena, porque estariam sempre assustados, pensando na seca.
Aproximavam-se agora dos lugares habitados, haveriam de achar morada. Não
andariam sempre à toa, como ciganos. O vaqueiro ensombrava-se com a idéia de
que se dirigia a terras onde talvez não houvesse gado para tratar. Sinha
Vitória tentou sossegá-lo dizendo que ele poderia entregar-se a outras
ocupações, e Fabiano estremeceu, voltou-se, estirou os olhas em direção à
fazenda abandonada. Recordou-se dos animais feridos e logo afastou a lembrança.
Que fazia ali virado para trás? Os animais estavam mortos. Encarquilhou as
pálpebras contendo as lágrimas, uma grande saudade espremeu-lhe o coração, mas
um instante depois vieram-lhe ao espírito figuras insuportáveis: o patrão, o
soldado amarelo, a cachorra Baleia inteiriçada junto às pedras do fim do pátio.
Os
meninos sumiam-se numa curva do caminho. – Fabiano adiantou-se para
alcançá-los. Era preciso aproveitar a disposição deles, deixar que andassem à
vontade. Sinha Vitória acompanhou o marido, chegou-se aos filhos. Dobrando o
cotovelo da estrada, Fabiano sentia distanciar-se um pouco dos lugares onde
tinha vivido alguns anos; o patrão, o soldado amarelo e a cachorra Baleia
esmoreceram no seu espírito.
E
a conversa recomeçou. Agora Fabiano estava meio otimista. Endireitou o saco da
comida, examinou o rosto carnudo e as pernas grossas da mulher. Bem. Desejou
fumar. Como segurava a boca do saco e a coronha da espingarda, não pôde
realizar o desejo. Temeu arriar, não prosseguir na caminhada. Continuou a
tagarelar, agitando a cabeça para afugentar uma nuvem que, vista de perto,
escondia" o patrão, o soldado amarelo e a cachorra Baleia. Os pés calosos,
duros como cascos, metidos em alpercatas novas, caminhariam meses. Ou não
caminhariam? Sinha Vitória achou que sim. Fabiano agradeceu a opinião dela e
gabou-lhe as pernas grossas, as nádegas volumosas, os peitos cheios. As
bochechas de Sinha Vitória avermelharam-se e Fabiano repetiu com entusiasmo o
elogio. Era. Estava boa, estava taluda, poderia andar muito. Sinha Vitória riu
e baixou os olhos. Não era tanto como ele dizia não. Dentro de pouco tempo
estaria magra, de seios bambos. Mas recuperaria carnes. E talvez esse lugar
para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado. Fabiano estirou o
beiço, duvidando. Sinha Vitória combateu a dúvida. Porque não haveriam de ser
gente, possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira? Fabiano franziu a
testa: lá vinham os despropósitos. Sinha Vitória insistiu e dominou-o. Porque
haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? Com certeza
existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos, como bichos?
Fabiano respondeu que não podiam.
–
O mundo é grande.
Realmente
para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era grande – e marchavam, meio
confiados, meio inquietos. Olharam os meninos, que olhavam os montes distantes,
onde havia seres misteriosos. Em que estariam pensando? zumbiu Sinha Vitória.
Fabiano estranhou a pergunta e rosnou uma objeção. Menino é bicho miúdo, não
pensa. Mas Sinha Vitória renovou a pergunta – e a certeza do marido abalou-se.
Ela devia ter razão. Tinha sempre razão. Agora desejava saber que iriam fazer
os filhos quando crescessem.
–
Vaquejar, opinou Fabiano.
Sinha
Vitória, com uma careta enjoada, balançou a cabeça negativamente, arriscando-se
a derrubar o baú de folha. Nossa Senhora os livrasse de semelhante desgraça.
Vaquejar, que idéia! Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde
havia montes baixos, cascalhos, rios secos, espinho, urubus, bichos morrendo,
gente morrendo. Não voltariam nunca mais, resistiriam à saudade que ataca os
sertanejos na mata. Então eles eram bois para morrer tristes por falta de
espinhos? Fixar-se-iam muito longe, adotariam costumes diferentes.
Fabiano
ouviu os sonhos da mulher, deslumbrado, relaxou os músculos, e o saco da comida
escorregou-lhe no ombro. Aprumou-se, deu um puxão à carga. A conversa de Sinha
Vitória servira muito: haviam caminhado léguas quase sem sentir. De repente
veio a fraqueza. Devia ser fome. Fabiano ergueu a cabeça, piscou os olhos por
baixo da aba negra e queimada do chapéu de couro. Meio-dia, pouco mais ou
menos. Baixou os olhos encandeados, procurou descobrir na planície. uma sombra
ou sinal de água. Estava realmente com um buraco no estômago. Endireitou o saco
de novo e, para conservá-lo em equilíbrio, andou pendido, um ombro alto, outro
baixo. O otimismo de Sinha Vitória já não lhe fazia mossa. Ela ainda se
agarrava a fantasias. Coitada. Armar semelhantes planos, assim bamba, o peso do
baú e da cabaça enterrando-lhe o pescoço no corpo.
Foram
descansar sob os garranchos de uma quixabeira, mastigaram punhados de farinha e
pedaços de carne, beberam na cuia uns goles de água. Na testa de Fabiano o suor
secava, misturando-se a poeira que enchia as rugas fundas, embebendo-se na
correia do chapéu. A tontura desaparecera, o estômago sossegara. Quando
partissem, a cabaça não envergaria o espinhaço de Sinha Vitória.
Instintivamente procurou no descampado indício de fonte. Um friozinho agudo arrepiou-o.
Mostrou os dentes sujos num riso infantil. Como podia ter frio com semelhante
calor? Ficou um instante assim besta, olhando os filhos, a mulher e a bagagem
pesada. O menino mais velho esbrugava um osso com apetite. Fabiano lembrou-se
da cachorra Baleia, outro arrepio correu-lhe a espinha, o riso besta esmoreceu.
Se
achassem água ali por perto, beberiam muito, sairiam cheios, arrastando os pés.
Fabiano comunicou isto a Sinha Vitória e indicou uma depressão do terreno. Era
um bebedouro, não era? Sinha Vitória estirou o beiço, indecisa, e Fabiano
afirmou o que havia perguntado. Então ele não conhecia aquelas paragens? Estava
a falar variedades? Se a mulher tivesse concordado, Fabiano arrefeceria, pois
lhe faltava convicção; como Sinha Vitória tinha dúvidas, Fabiano exaltava-se,
procurava incutir-lhe coragem. Inventava o bebedouro, descrevia-o, mentia sem
saber que estava mentindo. E Sinha Vitória excitava-se, transmitia-lhe
esperanças. Andavam por lugares conhecidos. Qual era o emprego de Fabiano? Tratar
de bichos, explorar os arredores, no lombo de um cavalo. E ele explorava tudo.
Para lá dos montes afastados havia outro mundo, um mundo temeroso; mas para cá,
na planície, tinha de cor plantas e animais, buracos e pedras.
Os
meninos deitaram-se e pegaram no sono. Sinha Vitória pediu o binga ao
companheiro e acendeu o cachimbo. Fabiano preparou um cigarro. Por enquanto
estavam sossegados. O bebedouro indeciso tornara-se realidade. Voltaram a
cochichar projetos, as fumaças do cigarro e do cachimbo misturaram-se. Fabiano
insistiu nos seus conhecimentos topográficos, falou no cavalo de fábrica. Ia
morrer na certa, um animal tão bom. Se tivesse vindo com eles, transportaria a
bagagem. Algum tempo comeria folhas secas, mas além dos montes encontraria
alimento verde. Infelizmente pertencia ao fazendeiro – e definhava, sem ter
quem lhe desse a ração. Ia morrer o amigo, lazarento e com esparavões, num
canto de cerca, vendo os urubus chegarem banzeiros, saltando, os bicos
ameaçando-lhe os olhos. A lembrança das aves medonhas, que ameaçavam com os
bicos pontudos os olhos de criaturas vivas, horrorizou Fabiano. Se elas
tivessem paciência, comeriam tranqüilamente a carniça. Não tinham paciência
aquelas pestes vorazes que voavam lá em cima, fazendo curvas.
–
Pestes.
Voavam
sempre, não se podia saber donde vinha tanto urubu.
–
Pestes.
Olhou
as sombras movediças que enchiam a campina. Talvez estivessem fazendo círculos
em redor do pobre cavalo esmorecido num canto de cerca. Os olhos de Fabiano se
umedeceram. Coitado do cavalo. Estava magro, pelado, faminto. e arredondava uns
olhos que pareciam de gente
–
Pestes.
O
que indignava Fabiano era o costume que os miseráveis tinham de atirar bicadas
aos olhos de criaturas que já não se podiam defender. Ergueu-se, assustado,
como se os bichos tivessem descido do céu azul e andassem ali perto, num vôo
baixo, fazendo curvas cada vez menores em torno do seu corpo, de Sinha Vitória
e dos meninos.
Sinha
Vitória percebeu-lhe a inquietação na cara torturada e levantou-se também,
acordou os. filhos, arrumou os picuás. Fabiano retomou o carrego. Sinha Vitória
desatou-lhe a correia presa ao cinturão, tirou a cuia e emborcou-a na cabeça do
menino mais velho, sobre uma rodilha de molambos. Em cima pôs uma trouxa.
Fabiano aprovou o arranjo, sorriu, esqueceu os urubus e o cavalo. Sim senhor.
Que mulher! Assim ele ficaria com a carga aliviada e o pequeno teria um
guarda-sol. O peso da cuia era uma insignificância, mas Fabiano achou-se leve,
pisou rijo e encaminhou-se ao bebedouro. Chegariam lá antes da noite, beberiam,
descansariam, continuariam a viagem com o luar. Tudo isso era duvidoso, mas
adquiria consistência. E a conversa recomeçou, enquanto o sol descambava.
–
Tenho comido toicinho com mais cabelo, declarou Fabiano desafiando o céu, os
espinhos e os urubus.
–
Não é? murmurou Sinha Vitória sem perguntar, apenas confirmando o que ele
dizia.
Pouco
a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando. Acomodar-se-iam num
sítio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano, criado solto no mato.
Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os
meninos freqüentariam escolas, seriam diferentes deles. Sinha Vitória
esquentava-se. Fabiano ria, tinha desejo de esfregar as mãos agarradas a boca
do saco e à coronha da espingarda de pederneira.
Não
sentia a espingarda, o saco, as pedras miúdas que lhe entravam nas alpercatas,
o cheiro de carniças que empestavam o caminho. As palavras de Sinha Vitória
encantavam-no. Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano
estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem
onde era. Repetia docilmente as palavras de Sinha Vitória, as palavras que
Sinha Vitória murmurava porque tinha confiança nele. E andavam para o sul,
metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos
em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos,
acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer?
Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada,
ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão
mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os
dois meninos.
Posfácio
Inferno,
alpercata: trabalho e liberdade em Vidas Secas
Hermenegildo
Bastos
Quando
Baleia sonha ou delira ou agoniza; quando pensa e projeta; quando opina sobre
Fabiano e os destinos, dele e seu, e de todos, homens e natureza; quando leva o
leitor a elaborar juízos de valor sobre o mundo e as relações sociais, qual o
sujeito dessas sensações e pensamentos? O narrador – que de maneira propositada
confunde o seu discurso com o dela? O escritor – intelectual para quem a
transformação socialista é o caminho de superação do mundo reificado? Os outros
personagens – iguais a Baleia, mas capazes de sacrificá-la no momento do
perigo? E o leitor, como se inclui na história? Até onde vai sua identificação
com o animal? Baleia é um locus de onde vêm muitas falas e silêncios,
onde se encontram e também se chocam vários sujeitos de enunciação. É a
figuração dos derrotados, mas transmite universalidade. Uma consciência ao
mesmo tempo individual e coletiva vive o mundo de opressão, mas também o sonho
de liberdade. O sonho termina em delírio porque não há lugar para ele, só pode
ser realizado pela transformação do mundo, mas encontra lugar numa escrita da
radicalidade.
A
construção dos capítulos confirma essa hipótese de leitura. Cada um tem seu
ponto de vista, o seu foco. A cada capítulo muda a perspectiva, que ora é de
Fabiano, ora é de Baleia, ora é do menino mais velho etc., nunca é a imposta
pelo narrador. O eu e os seus outros. A literatura de Graciliano Ramos se
articula em torno do problema do outro – como viram os seus críticos, de
Antonio Candido e Roger Bastide e João Luis Lafetá e Luís Bueno.
Numa
sociedade como a nossa, em que o outro (de classe, de gênero, de etnia) está
soterrado, numa obra como a de Graciliano Ramos é algo quase único. Mas que não
se busque aí o canto da alteridade como coisa dada, pois o que temos é a
difícil ou quase impossível alteridade. É no limite que ela de compõe. O modo
de compor abre a narrativa à busca do outro. Aí se materializa o ponto de vista
ideológico do escritor.
Vidas
secas apresenta e representa um mundo
pós-edênico. O mundo da queda e da degradação. Mais isso é colocado num
horizonte novo, se comparado com as outras obras do escritor. Nele não cabem os
trabalhadores de São Bernardo. Estes habitam um planeta cuja divisão de
trabalho é moderna. Não quero dizer que Fabiano não está no mundo capitalista,
está, mas numa relação diversa.
Fabiano
não é a nova versão de Marciano ou Mestre Caetano, ainda que compartilhe com
eles a condição de trabalhador rural desqualificado. Fabiano protagoniza outra
história: protege o filho mais velho quando da longa viagem, esforça-se por
entender o mundo e a exploração, pode escolher entre matar o soldado amarelo ou
deixá-lo viver, suporta os conflitos de ter que dar cabo de Baleia e, aos olhos
do filho mais novo, é um herói.
A
condição humana em Vidas secas é degradada, mas a proximidade dos
personagens da vida natural lhes confere uma espécie de reserva ética que não
existe nos demais romances de Graciliano Ramos. É como a memória de um estágio
de evolução em que a reificação não era absoluta como já o é em São Bernardo.
E, mais importante, a memória é do passado, mas pode também ser do futuro. Como
se pudéssemos recomeçar, estabelecendo outros vínculos com a natureza e entre
os homens. A natureza não é, então, paisagem. É o outro do homem, lhe impõe
limites a partir dos quais ele trabalha e submete-se aos imperativos da
escassez e da necessidade. O homem a domina e domina-se. Urge então criar novos
caminhos.
Em
2008 este pequeno livro, experimental e clássico, completa 70 anos de vida. Que
se pode dizer dessa longevidade? Ela se origina de como o romance provoca o
leitor a acompanhar o processo de produção literária; ao mesmo tempo envolve-o
na questão do destino dos personagens e do gênero humano. Ao ser levado por
esse ritmo, o leitor vivencia o trabalho, a fadiga e os limites naturais e
sociais da existência humana. Diretamente ligado a isso, o leitor pode
vislumbrar o mundo da liberdade nos pequenos sonhos daqueles pequenos seres. Os
sonhos são modestos, mas por eles o leitor pode ver um mundo outro, de
liberdade: do autor na produção de sua obra e dos personagens nos eventos
narrados.
Roger
Bastide diz que a composição em Graciliano Ramos se faz por decomposição. A
visão, diz ele, é sempre analítica. Deveríamos acrescentar que, se isso é
assim, é porque a reificação invade o trabalho poético. O que temos são partes
do corpo, ou da alma, ou do espaço, ou do tempo. Só depois essas partes se
conjugam na visão do narrador e do leitor. Suprema coragem de um escritor, a de
assumir a condição da arte numa sociedade reificada.
Dizer
que um mundo outro que não o da reificação é possível pressupõe o mundo real
como espaço de uma derrota prévia.
Se
Graciliano Ramos queria eliminar tudo para ficar só com a poesia, como disse
Otto Maria Carpeaux, falta dizer que tampouco a poesia consegue fugir à
reificação. Eis a experiência cruel vivida pelo menino mais velho no
deslumbramento que tem todo poeta em face da descoberta de uma palavra nova:
que quer dizer inferno? Ele não podia aceitar que uma palavra tão bonita (a
palavra-coisa de que fala Sartre) pudesse ter um significado tão ruim.
Infelizmente não pôde resistir ao poder da palavra. Sinha Vitória não lhe dá
atenção; depois lhe dará um cocorote.
"Estivera
metido no barreiro com o irmão (...). Deixara o brinquedo e fora interrogar
sinha Vitória. Um desastre. A culpada era sinha Terta, que na véspera, depois
de curar com reza a espinhela de Fabiano, soltara uma palavra esquisita (...).
Ele tinha querido que a palavra virasse coisa e ficara desapontado quando a mãe
se referira a um lugar ruim..."
A
linguagem é, como se tem observado, um problema em Vidas secas, a
linguagem como a consciência imediata do homem. Os personagens de Vidas
secas, em sua existência quase "natural", ganham a sua
sobrevivência na luta direta com os elementos naturais, num estágio dirse-ia
primitivo das forças produtivas. Apesar disso, recebem seu soldo, fazem parte
da economia capitalista de que a fazenda, o seu proprietário, os outros
trabalhadores, os habitantes da vila – dentre eles, o soldado amarelo, o dono
da venda, o fiscal etc. – integram-se ao processo de exploração do capitalismo
em sua vertente colonial.
Próximos
à natureza, mas ao mesmo tempo dela afastados por uma relação de trabalho
alienado, os personagens de Vidas secas parecem ser símbolos do ser
social em seu processo de evolução histórica. É nesse sentido que se pode dizer
que a natureza é a questão aí: natureza e trabalho.
Daí
certo caráter mágico que preside as ações dos personagens. A magia, prática
social de tempos pretéritos, agora passa a ser uma forma de alienação. Mas
sugere, contrapondo-se ao pensamento lógico-discursivo do narrador – sua
sintaxe e forma narrativas –, uma opção. Como forma de pensamento dos
personagens, a magia não desequilibra o pensamento do narrador, mas
relativisa-o; retira dele qualquer sombra de completude ou auto-satisfação. A
magia é ao mesmo tempo o limite que se coloca aos personagens e o sonho de
superação desse limite. O falado (e mal interpretado) fatalismo de Graciliano
Ramos pressupõe a liberdade humana como contraparte dialética. A ida para o Sul
não é essa liberdade. Se a narrativa segue um rumo fatalista, se a opressão vence,
há aí, entretanto, uma lição de liberdade.
Acompanhamos
outra vez essa lição na ação que se segue ao diálogo do menino mais velho com
sinha Vitória. De volta da decepção que sofrera com a mãe, ele topa com
Fabiano, que lhe ordena que bote os pés do menino mais velho, no couro, o
vaqueiro desenha com uma faca uma alpercata. Em vez das palavras da poesia, uma
alpercata para bater e ser batido e moído no chão do mundo.
No
desenho feito pelo vaqueiro, a alpercata projetada cortada na medida do pé do
menino é o imaginário. Do traço do vaqueiro no couro salta a alpercata. Mas
esse trabalho traz em si suas limitações: sendo produção de um artefato para a
luta pela sobrevivência, é também forma de submissão às condições impostas.
O
menino mais novo também tem sua parcela de punição: ao tentar mimetizar o pai
vaqueiro, sofre o deboche dos outros. Também Baleia morre sonhando com um mundo
cheio de preás, um sonho impossível de ser sonhado, já delírio.
A
imaginação é impedida de se realizar plenamente e, assim, internaliza os
limites a ela impostos, passando a incluí-los, mas sem deixar de combatê-los. A
condição comum ao menino mais velho, ao mais novo e a Baleia é a da reificação.
Vidas secas narra o mundo reificado e a luta dos homens pela liberdade.
A
condição do autor não é outra. Os limites da imaginação são tomados como
problema da vida e também da arte. Só assumindo os limites é possível ir além
deles. O autor também vive no mundo reificado e a sua atividade como escritor
também se dá nesse mundo. A questão tratada como situação dos personagens é
também a questão da obra que está sendo produzida e seguida de perto pelo
leitor. O leitor vê a imaginação e os seus limites na história e no discurso. A
obra narra duas histórias simultaneamente: a história de Fabiano e sua família
e a história da escrita da obra. O escritor converte-se em personagem da obra,
de modo diferente daquele de quando o narrador era também personagem.
O
que se chamaria "a liberdade de criar" é problematizado em Vidas
secas, como de resto em toda obra literária. Mas aqui o é assumidamente, como
um acinte (no sentido da expressão latina: a scinte, a sciente, o que é
praticado de caso pensado, com o fim de provocar). Liberdade de produzir,
liberdade de dispor das técnicas de produção. Mas quem pode dispor sem
constrangimentos (econômicos antes de tudo, políticos em seguida) das técnicas
de produção?
O
leitor é levado a acompanhar o desenrolar da obra, a compartilhar as escolhas
do escritor e tornar-se partícipe dela, envolver-se na questão da escrita a
cada linha. O que significa exercer a atividade de escritor nesse mundo? Fazer
de conta que estamos em outro mundo de plena liberdade é uma ilusão de todo
estranha a Graciliano Ramos – sendo essa uma das lições de recusa do grande
escritor. A obra internaliza o espanto do menino mais velho, a sensação de
impotência e ridículo do menino mais novo, a agonia e o delírio de Baleia.
A
construção de Vidas secas é de extrema liberdade com relação à
verossimilhança. Invade o terreno da poesia, o que foi tão bem percebido por
João Cabral de Melo Neto. Como num painel, despreza os liames tradicionais da
narrativa romanesca. Compões o conjunto a partir de partes já por si autônomas.
Tece um diálogo entre o narrador (letrado, racionalista, politizado) e o
personagem (iletrado, místico e mágico, não politizado), fazendo com que os
universos dos dois se contaminem mutuamente. Fabiano fala por sobre – e não sob
– a fala do escritor. O narrador, aparentemente neutro, se envolve nas ações
narradas, e, assim como o personagem, tampouco pode apontar as saídas para a
condição de opressão em que todos vivem.
O
tema da prisão (da ausência de liberdade) em Graciliano Ramos é dominante em Memórias
do cárcere, é colocado como possibilidade real em Angústia, mas está
presente em todos os seus livros como um tema que inclui a própria arte e que
se potencializa a partir dela. A arte é o lugar em que a prisão se confronta
com a possibilidade de sua superação.
A
primeira delas é o exercício da liberdade artística como crítica ao
enrijecimento da técnica numa sociedade em que a produção humana visa apenas
aos interesses imediatos e alienados da dominação e em que somos todos, os seus
leitores e os demais, escravos das técnicas impostas para a reprodução das
condições de produção. A segunda é a ilusão de que a liberdade da arte é comum
a todos os membros da sociedade de que faz parte.
A
obra nos transmite essa contradição que lhe é construtiva. É no terreno da
técnica que a mimese é irrefutável: pelas técnicas que a obra põe em ação, ela
aponta para o mundo da produção e, dessa forma, para a sociedade da divisão do
trabalho e da exploração.
Arte
é liberdade, como tal se opõe ao mundo da opressão em que vivemos. O específico
do trabalho artístico é que nele os fins práticos que estão na mira do trabalho
humano são postos em suspensão.
Cada
artista desenvolverá o seu trabalho conforme as suas próprias peculiaridades.
Isso dará a sua marca, que é a maneira como ele se situa em meio às
contradições. O trabalho literário é, assim, ao mesmo tempo, amaldiçoado porque
lembra o homem, pelo revés, a sua falta de liberdade, mas também um espaço de
resistência porque reafirma o horizonte da liberdade.
No
seu trabalho, o artista não age para atender a qualquer finalidade prática. Na
vida comum, porém, todos nós, incluído o artista enquanto membro da sociedade,
somos obrigados a produzir segundo técnicas que interessam à reificação já em
vias de ser absoluta. A primeira coisa que nos diz uma obra de arte é que o
mundo da liberdade é possível, e isso nos dá força para lutar contra o mundo da
opressão. A arte é a antítese da sociedade.
Em
"Baleia" (inicialmente conto, depois capítulo, mas sempre o núcleo de
que se originou a obra) inscreve-se essa dialética. Quando acompanhamos seus
pensamentos e projetos, sonhos, delírios e juízos de valor, nós leitores somos
também parte da subjetividade que leva o seu nome.
ass ;sergio almeida 8v1 grupo1
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